quarta-feira, 2 de novembro de 2016
Tecnologias na educação
O QUE JUSTIFICA A ADOÇÃO DE TECNOLOGIAS
DIGITAIS NA EDUCAÇÃO?
Luciana
Maria Allan
Vivemos um momento muito especial na
história da humanidade. Momento este marcado pela invenção de uma tecnologia
que vem revolucionando a forma como acessamos informação, nos relacionamos uns
com os outros e organizamos nossas atividades diárias.
Quando pensamos em tecnologia, a
primeira coisa que nos vêm à cabeça é o computador. Mas, muitas outras coisas
são tecnologias. Como exemplo: a televisão, o avião, o livro, a lâmpada e o
liquidificador. Enfim, milhares de recursos que fazem parte do nosso dia a dia
e que nos ajudam a executar nossas tarefas, seja na vida pessoal ou
profissional.
Situações como esta, não são novas. Se
olharmos para trás, lembraremos de muitas outras tecnologias que já
revolucionaram, em algum momento, a história da humanidade. Por exemplo: a
prensa. Inventada em 1439, ela mudou a forma como registramos a informação.
Antes de termos este recurso à disposição, muito se perdeu da história da
humanidade. E a geladeira? Inventada em 1857 revolucionou a forma como
armazenamos os mantimentos. Sem ela, era necessário salgar carnes e era quase
impossível armazenar alimentos perecíveis. E o telefone? Inventando em 1856 foi
um recurso revolucionário. Até pouco tempo, para fazermos uma ligação tínhamos
que nos dirigir a uma cabine telefônica para solicitar a chamada. Hoje, já
temos mais celulares no Brasil do que o número de habitantes.
Muitos outros recursos poderiam ser
mencionados. O fato é que hoje, muitas destas tecnologias já estão incorporadas
na nossa rotina e, na maioria das vezes, nem percebemos quando as utilizamos.
Ninguém para, por exemplo, para pensar o que fazer e como utilizar, uma caneta
ou um fogão ou um quadro negro na sala de aula. Mas, pode ter certeza, que
algum dia, alguém já parou e refletiu sobre elas.
Mas então, que tecnologia é esta que
está mexendo conosco e alterando a nossa rotina?
Provavelmente, você pense que é o
computador... Mas, não! Na realidade a grande revolução tecnológica da nossa
época é a Internet. Você já parou para pensar como vivíamos antes do advento
desta tecnologia e como vivemos agora? Consegue lembrar de mudanças
significativas na sociedade e na economia?
Vejamos, por exemplo, o que mudou com o
comércio eletrônico. Até pouco tempo, quando precisávamos comprar um
eletrodoméstico era necessário perder uma manhã de sábado visitando várias
lojas de departamento para fazer pesquisa de preços, enfrentar horas em uma
fila para abrir um crediário e esperar, por vários dias, para receber o produto
em casa. Hoje, é possível acessar a Internet, visitar sites que fazem pesquisa
de preços, verificar onde o produto está mais barato, ver a avaliação que
outros consumidores fizeram do produto e, este mesmo site, já te remete para a
loja escolhida, onde a compra pode ser feita com um cartão de crédito. Com o
pagamento efetuado, o produto é encaminhado pela loja para qualquer lugar do
Brasil em pouco tempo.
Outro exemplo: o governo eletrônico.
Hoje é possível tirar certidões pela Internet, agendar para tirar documentos e
até entregar imposto de renda pelo celular, evitando filas.
Como último exemplo, considerado uma
grande revolução, temos a telemedicina. Comunidades ribeirinhas do rio Amazonas
têm sido beneficiadas com atendimento médico emergencial, com suporte de um
computador e acesso à Internet. Antes de ter esta tecnologia à disposição,
moradores destas comunidades tinham que se deslocar até 7 horas de barco para
chegar ao centro urbano e poder passar por um atendimento médico.
Não
são bons exemplos do quanto a Internet está revolucionando a sociedade? Agora,
olhemos para a Educação? Você consegue lembrar de alguma mudança significativa
que ocorreu na área educacional com o advento das tecnologias digitais, mais
especificamente do computador e da Internet?
Provavelmente não, pois as experiências
inovadoras ainda são poucas e ocorrem de forma muito tímida e pontual. O fato é
que estamos tentando trazer estes recursos para dentro de um sistema
tradicional de ensino, que segue um calendário agrário, ou seja onde as
oportunidades de aprendizagem começam em meados de janeiro e se encerram no
final de novembro, dentro de um tempo industrial, ou seja, todo mundo
aprendendo a mesma coisa ao mesmo tempo e dentro de um currículo medieval, com
uma preocupação de se ensinar “tudo” a todos. Mas, o que é este “tudo” quando
temos a informação disponível em diferentes mídias e sendo atualizada
permanentemente?
Seligman & John em 2009 já
nos diziam que entre 1954 e 1984 foi produzido mais informações que nos cinco
mil anos anteriores. Em 1984 calculava-se que os textos científicos duplicavam
a cada cinco anos e meio, em 1990 a cada 20 meses e em 2004, a metade dos
cientistas que já viveram sobre a Terra estava vivo e produzindo conhecimento.
Com o advento das tecnologias digitais, novas
gerações também surgiram. A primeira delas, que faz parte do período de
disseminação da Internet, é a Geração Y nascida entre 1975 e 1995. Esta geração
não nasceu com as tecnologias digitais à disposição, mas ainda na juventude foi
exposta a elas, o que fez com que se familiarizassem facilmente. Esta geração
não está mais cursando a Educação Básica são jovens que já estão no mercado de
trabalho e que têm características bem marcantes:
•
são questionadores;
•
adoram desafios; e
•
necessitam ser avaliados constantemente.
Caso tenha acesso à Internet, sugiro
que vejam o vídeo “Todos queremos ser jovens” disponível em
(https://youtu.be/3j0R6IHveqs).
A última geração, nascida após 1995 e
chamada de Geração Z, é aquela que já nasceu impulsionada pelas tecnologias
digitais. São os chamados nativos digitais e que hoje são nossos alunos! Para
eles, zapear é o verbo. Não usam mais e-mails e são capazes de interagir com
diversas tecnologias ao mesmo tempo. Estudam assistindo TV, navegando na
Internet, ouvindo música e trocando mensagens de texto pelo celular.
As pesquisas da Neurociência, mais
especificamente da Neuroeducação, têm nos dado dicas de como pensam, agem e
aprendem estas crianças e jovens. Brandão (2005) já dizia que “As novas
tecnologias trazem novas formas de operar a leitura e a escrita e novos modelos
mentais”. Esta afirmação é confirmada quando pensamos na Internet. Sua
linguagem é hipertextual, possibilitando que ao clicar em um link em uma
página, sejamos remetidos para outra página, com outra informação e lá,
provavelmente poderemos clicar em outro link e ter acesso a outras informações.
Neste processo, o pensamento deixa de ser cartesiano e sequencial e passa a
funcionar por meio de conexões.
Também encontramos pesquisas que nos
mostram que hoje processamos informações mais rápido que há 20 anos; que as
crianças aprendem muito mais pelo visual, chegando a ter o córtex visual 20%
mais largo, que respondem bem a vários estímulos, mas refletem pouco. Os jogos
de videogames também têm se mostrado recursos interessantes, mas que sem a
intervenção do professor, não contribuem para que elaborem pensamentos em
termos cognitivos mais altos. O simples fato de disponibilizar um vídeo, de ter
acesso a um site da Internet ou a um jogo educativo, não quer dizer que os
alunos aprendam. O professor precisa mediar todo este processo, levando os
alunos a refletir sobre as oportunidades de aprendizagem.
Outro aspecto que é importante
refletir, quando estamos avaliando a importância de criar oportunidades de uso
de tecnologias digitais na Educação, é qual o objetivo final da Educação. Está
nas primeiras páginas dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) é objetivo
final do Ensino Médio preparar o aluno para dar continuidade aos seus estudos,
ingressar no mercado de trabalho e exercer sua cidadania. Se isto é fato, é
preciso olhar para todos os graus de ensino e analisar se nossas estratégias
têm sido eficazes.
Em pesquisa recente realizada com 63
presidentes de grandes empresas, os mesmos mencionaram que buscam jovens que
saibam se comunicar bem pela oralidade e pela escrita, tenham um bom raciocínio
lógico, que saibam pesquisar, se relacionar bem, usar tecnologias, administrar
bem o tempo, preservar o meio ambiente e fazer trabalho voluntário. Ou seja,
muito mais do que pessoas com conhecimento técnico, as empresas estão buscando
pessoas que tenham atitude, iniciativa, criatividade e resiliência. Sendo
assim, perguntamos: em que momento a organização de nossas estratégias de
ensino suportam estes novos desafios?
Também vemos com frequência informações
dizendo que já somos a 6ª economia mundial e que temos grandes oportunidades:
eventos esportivos, oportunidades na área de mineração e pré-sal. Mas, ao
olharmos alguns dados, ficamos extremamente preocupados:
Brasil
está em 88º lugar em Educação, atrás da Argentina, Chile, Equador e Bolívia.
(UNESCO, março de 2011);
Brasil
é o 84º no IDH, atrás do Chile (44º), Argentina (45º), Uruguai (48º) e Cuba
(51º) e 73º em desigualdade social. (PNUD, novembro de 2011); e
A
média do Brasil das avaliações aplicadas nos anos iniciais do ensino
fundamental foi de 5,0, nos anos finais, 4,1 e no Ensino Médio, 3,7. A média
dos países desenvolvidos é 6 – índice definido como meta para o Brasil atingir
em 2022. (IDEB, 2011)
Ou seja, o Brasil está sim cada vez
mais rico, mas as oportunidades de aprendizagem são poucas. Tudo isso porque
nossos alunos não estão aprendendo. O que é mais crítico é que 40% abandonam a
escola por falta de interesse (FGV 2009).
Então, se queremos alcançar nossos
objetivos, ou seja, criar oportunidades para que nossos alunos aprendam, sigam
seus sonhos, deem continuidade aos seus estudos, trabalhem e constituam
família, precisamos repensar:
•
o currículo que estamos trabalhando, sendo capazes de identificar os conteúdos
que são relevantes e façam sentido para os alunos;
•
as estratégias de ensino de forma que elas sejam mais instigantes, desafiantes,
coloquem o aluno no centro da aprendizagem e colaborem no desenvolvimento de
suas competências e habilidades básicas para serem sujeitos mais participativos
na sociedade contemporânea;
•
os recursos que deverão apoiar estas iniciativas e aí, nem sempre o computador
é o melhor. A escola tem muitos outros recursos que são extremamente interessantes.
É muito importante ter claro qual é o objetivo de aprendizagem, para então se
pensar qual é a melhor estratégia para suportá-la. Ao adotar tecnologias
digitais sem ter um objetivo muito claro, corre-se um grande risco de se
otimizar o péssimo, ou seja, aquilo que já não era bom, torna-se ainda pior e
aí sim, os alunos farão uso dos recursos disponíveis da forma que quiserem,
inclusive acessarão sites inadequados na Internet. Os alunos são nativos
digitais e sem uma proposta clara, eles têm fluência para fazerem o que acharem
mais interessante. No entanto, se há clareza dos objetivos educacionais e da
proposta de trabalho, os alunos não terão tempo para fazer o que não devem e se
envolverão com o trabalho proposto, mediado pelo professor – ator, quando qualificado,
indispensável ao processo educacional.
Com
advento da Internet e dos dispositivos móveis, é urgente repensar as
estratégias de ensino de forma que atendam as necessidades da Geração Z e da
sociedade contemporânea. Uma boa prática para suportar estes desafios é a
Aprendizagem baseada em Projetos. Com apoio desta estratégia, os alunos poderão
ser envolvidos em processos de ensino suportados por Boas Perguntas.
A avaliação e devolutiva aos alunos
também é uma constante nestes momentos, extremamente importante e valorizada
por esta geração.
Nas estratégias de aprendizagem
organizadas neste formato, você (professor) precisa aprender a aprender,
inclusive com seus alunos, se apropriar de recursos tecnológicos digitais
básicos e não se preocupar caso eles saibam mais do que você (isso acontece em
90% das vezes). Sugerimos também que participe de comunidades virtuais que
discutam questões relacionadas à adoção de tecnologias digitais na educação,
repense sua prática e planeje muito! Somente assim, você será capaz de
organizar as melhores estratégias de aprendizagem que tenham como foco uma
Educação de qualidade.
Para encerrar, trazemos uma frase de
Jean Piaget, que apesar de ter sido escrita há tempos, ainda reflete o que
esperamos da Educação:
“A principal meta da educação é
criar homens que sejam capazes de fazer coisas novas, não simplesmente repetir
o que outras gerações já fizeram. Homens que sejam criadores, inventores,
descobridores. A segunda meta da educação é formar mentes que estejam em
condições de criticar, verificar e não aceitar tudo que a elas se propõe.”
sábado, 15 de outubro de 2016
Por um caminho sustentável para inovar na Educação pública brasileira
A
ideia de Educação universal, de qualidade, pública e gratuita talvez seja o
mais ousado, difícil e ambicioso projeto do século 21
Se as nossas escolas públicas ganhassem um real
para cada ideia revolucionária que já foi tentada na Educação brasileira,
teríamos o sistema educacional mais rico do mundo. Parece que quanto mais
problemática nossa Educação aparenta ser, mais fértil se torna o mercado de
ideias milagrosas, soluções rápidas e receitas indolores para tirá-la do
buraco. Esse é, na verdade, um grande desafio das sociedades democráticas em geral:
convencer a população de que não há milagre ou mágica para alguns dos grandes
problemas nacionais, principalmente aqueles com mecanismos e dinâmicas
invisíveis. Parece fácil compreender que, se queremos saúde pública de
qualidade, precisamos de mais hospitais e médicos; se queremos transporte
público de qualidade, precisamos de mais metrô. É necessário investir, e os
resultados demoram: precisamos de uma década para formar um bom médico, o metrô
demora anos para ficar pronto.
Em Educação, as coisas são mais confusas e sutis.
Os sistemas educacionais públicos são uma combinação de obras físicas, pessoas,
sistemas organizacionais, currículos e princípios pedagógicos. É muito mais
difícil entender como esse sistema complexo funciona e como podemos melhorá-lo.
É tentador acreditar em curandeiros e em suas soluções (ou tecnologias)
milagrosas. A boa notícia é que as ciências que estudam os sistemas
educacionais evoluíram enormemente nos últimos 40 anos: a pedagogia, as
ciências cognitivas, a economia, as ciências organizacionais, a psicologia e
uma infinidade de outros campos do conhecimento relacionados, como a
neurociência, a mineração de dados e a estatística. Além disso, os filósofos e
sociólogos da Educação também fizeram avançar nosso entendimento sobre o papel
da Educação nas sociedades modernas e sobre os sistemas humanos e
micropolíticos que sustentam e habitam as escolas. Essa combinação de avanços
tem enorme potencial para trazer melhoria sustentável para a Educação
brasileira, mas ela exige uma alteração radical na nossa abordagem. Essa
mudança, acredito, tem cinco pontos principais: 9 (a) reconhecer o tamanho do
problema e investir em pesquisa; (b) abordar a implementação de novos sistemas
educacionais como um problema científico multidisciplinar; (c) abordar a nossa
visão da Educação como um problema filosófico e de projeto de sociedade; (d)
inovar com base no que já deu certo e em teorias educacionais sólidas; e,
finalmente, (e) medir e avaliar com rigor, mas criar avaliações inovadoras que
meçam o que efetivamente interessa.
Foi só no final do século 19 que a Educação começou
a tomar forma como um direito efetivamente universal, e só em meados do século
20 que a ideia de uma Educação de igual qualidade para todas as classes sociais
passou a ser majoritariamente aceita. No Brasil, só alcançamos a
universalização na última década – mais de cem anos depois de virarmos uma
república. Portanto, a ideia de Educação universal, de qualidade, pública e
gratuita talvez seja o mais ousado, difícil e ambicioso projeto do século 21,
principalmente para um país em desenvolvimento. Um desafio assim não se
conquista apenas com “mais dinheiro para a Educação”, como ouvimos frequentemente
em campanhas eleitorais. Mesmo que tivéssemos recursos infinitos, não
saberíamos quais as soluções técnicas para todos os problemas, porque essas
soluções requerem vários ciclos de desenho, teste, redesenho e implementação.
Também não basta organizar expedições pelo mundo para “trazer o que
(supostamente) está dando certo” para o Brasil, porque soluções que funcionam
em um país de 5 milhões de habitantes (como a Finlândia) ou com um PIB per
capita de 55 mil dólares (como Cingapura, cinco vezes maior que o brasileiro)
não vão funcionar automaticamente no Brasil sem amplas adaptações. Como em
qualquer grande problema científico, precisamos de pesquisa e de uma massa
crítica de pesquisadores trabalhando em tempo integral nesse tema. Como em
qualquer grande problema de política pública, precisamos de equipes estáveis
nas secretarias de Educação e de continuidade nos programas governamentais – e
nos acostumar com a ideia de que é uma viagem de duas ou três décadas.
Desenhar, implementar e medir um sistema da
dimensão do nosso sistema educacional requer um gigantesco esforço científico.
Mas “científico” não quer dizer simplesmente numérico ou estatístico, ou que
devamos desprezar as ciências humanas no estudo da Educação. Grandes
descobertas da Educação vieram de estudos etnográficos ou qualitativos, porque
esse tipo de pesquisa é muito útil para identificar os [Precisamos] nos
acostumar com a ideia de que é uma viagem de duas ou três décadas mecanismos de
aprendizagem mais eficientes (em vez de simplesmente achar correlações). Sabemos
que não há econometria que dê conta das complexidades da Educação, mas também
não podemos prescindir dos instrumentos metodológicos dos economistas e
estatísticos. Precisamos de profissionais de várias especialidades para gerar a
ciência que vai melhorar a Educação brasileira: pedagogos, educadores,
economistas, sociólogos, psicólogos, neurocientistas, cientistas da computação
etc. O importante não é brigar pelo tipo de pesquisa que conta como científica
(qualitativa ou quantitativa), mas o seu rigor: o que quer que seja feito deve
obedecer a padrões científicos de alto nível em cada disciplina. Além disso,
precisamos criar fóruns de debate e colaboração multidisciplinar, de modo que
pesquisadores possam avançar coletivamente nas fronteiras do conhecimento no
tema.
O fato de abordarmos a implementação da Educação
como um problema científico não significa que devamos eliminar a discussão
filosófica sobre o que queremos da Educação. Esse debate deve ser baseado no
que queremos ser como sociedade, que futuro imaginamos para nossas crianças e
que tipo de DNA intelectual queremos construir para o Brasil. Se optarmos por
uma Educação majoritariamente voltada para o trabalho e o mercado, talvez
decidamos eliminar disciplinas como as artes, os esportes e as humanidades. Se,
por outro lado, optarmos por uma Educação mais humanista e global, daremos
ênfase no Ensino Fundamental a uma formação mais generalista. Se desejamos ter
uma sociedade mais inventiva, talvez devamos ter mais cursos em que os alunos
exercitem a sua criatividade. Ou talvez decidamos por uma combinação de várias
abordagens. De qualquer forma, essas decisões não são problemas científicos,
mas decisões políticas e filosóficas que devemos tomar antes de entrarmos nas
questões de implementação.
Não adianta ter uma grande visão filosófica para a
Educação e ótimos pesquisadores se não soubermos inovar. Inovação não é
necessariamente tecnológica e muitas vezes pode ser até fora da sala de aula –
por exemplo, na gestão das escolas ou no seu projeto arquitetônico. Inovação é
fundamental porque a mais genial das análises estatísticas não tem como criar
novos currículos e abordagens pedagógicas, assim como um economista jamais vai
descobrir a cura de uma doença ou colocar um foguete em órbita. Para medir os
resultados da inovação, podemos contar com outros profissionais, mas, para
inovar, precisamos de quem entenda de Educação. Entretanto, inovação sem teoria
e sem conhecimento histórico é extremamente ineficiente. Saber o que já foi
feito e testado é a forma inteligente de produzir inovação que não reinventa a
roda. Assim como temos 200 milhões de técnicos de futebol no Brasil, muita
gente acha que entende de Educação só porque passou pelo sistema educacional,
sem jamais ter tido uma experiência profissional na área ou estudado pedagogia,
psicologia, ciência cognitiva ou desenho instrucional. O resultado é que ficamos
continuamente “reinventando” o que já foi feito, duplicando esforços sem
acumulação de conhecimento, submetendo nossas escolas e professores a um
martírio de velhos novos projetos a cada quatro anos. Ao mesmo tempo, como
insistimos em desvalorizar o(a) professor(a) e o(a) pesquisador(a) de pedagogia
de todas as formas possíveis, preferimos não ouvi-lo(a) quando se trata de
pensar em reformas educacionais. O resultado é que a mortalidade de inovações
educacionais – tanto no setor privado quanto no público – é altíssima. Inovamos
sem levar em consideração que existe uma enorme quantidade de conhecimento
sobre como o cérebro funciona e se desenvolve, como alunos aprendem de forma
mais eficiente e com mais motivação, como organizar salas de aula de forma mais
eficaz e como desenhar currículos otimizados. Sim, esse conhecimento existe,
mas como dá um trabalho imenso ir atrás de tudo isso, muitas vezes se prefere
“inovar” como se o saber sobre a cognição humana tivesse parado no século 19.
Por fim, precisamos atacar o fetiche da medição. Em
um país de altos índices de analfabetismo matemático como o Brasil, quem tem um
olho é rei: números e estatísticas adquiriram uma credibilidade quase
religiosa, que esconde que eles são tão confiáveis quanto os pesquisadores que
desenharam os métodos de coleta e análise de dados. Há muitas formas de os
números “mentirem”: se a coleta de dados foi mal desenhada, se o pesquisador
não a controlou pelas variáveis certas, se elementos externos influenciaram os
resultados, se as técnicas estatísticas não foram rigorosas ou se a margem de
erro é muito grande. Para dizer que a escola A é melhor que a escola B não
basta calcular a média do Enem – afirmar algo assim com segurança exige uma tese
de mestrado. Mas, de novo, usar todo esse rigor dá trabalho e frustra as nossas
expectativas de colocar tudo em rankings tão fáceis de entender como a
classificação do campeonato brasileiro. Mas rankings mal calculados e
apressados, dados sem rigor e estatísticas sem significado são muitas Não
adianta ter uma grande visão filosófica para a Educação e ótimos pesquisadores
se não soubermos inovar vezes piores do que simplesmente admitir que ainda não
sabemos medir a variável de interesse.
Mas medir de forma inteligente vai além de medir
com rigor. Precisamos medir o que interessa. Não podemos medir tudo que
desejamos na formação de um jovem só com testes de múltipla escolha. Nem tudo
que interessa em avaliação educacional deve ser medido em testes nacionais com
milhões de estudantes. Parte da avaliação do aprendizado tem de ser feita na
escola, pelos professores, em pequenos grupos. Por exemplo, como avaliar se um
aluno sabe pensar matematicamente sem observar todo o seu raciocínio, etapa por
etapa? Como medir se um aluno sabe fazer uma experiência científica sem estar
em um laboratório? Como avaliar se o aluno consegue criar uma invenção em um
laboratório “maker” só com papel e caneta? Medir esse tipo de habilidade é uma
tarefa complexa, cara e difícil, mas é um desafio fundamental para criar
incentivos reais para que as nossas escolas sejam mais inovadoras. Se as
escolas continuarem a ter como única régua a nota no Enem e de vestibulares de
“papel e caneta”, a inovação vai continuar a ser um luxo restrito a escolas de
elite.
As escolas ensinam aquilo que sabem medir e medem
aquilo que a sociedade valoriza. Enquanto estivermos obcecados com rankings
nacionais em provas de múltipla escolha, continuaremos a dar o incentivo errado
para o sistema educacional, e as escolas continuarão a focar seu tempo e
energia em treinamento para testes. Se, ao contrário, começarmos a criar e
valorizar outros tipos de medidas e comparações, daremos uma chance às escolas
inovadoras de mostrar ao mundo o que estão fazendo e com que qualidade. A
equipe do PISA (Programme for
Internacional Student Assessment, Programa Internacional de Avaliação de
Estudantes, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a
OCDE), por exemplo, está criando e aplicando em escala piloto avaliações de
aprendizado colaborativo, pensamento crítico, criatividade e inovação. Medir o
que interessa – e não o que é barato mensurar – é um dos passos mais
importantes para a inovação sustentável, porque a medição também é um mecanismo
de democratização.
O Brasil sabe inovar em diversas áreas: na música e
em outras artes, na aviação, na agricultura, nos esportes, na exploração de
petróleo. Sabemos inovar na Educação, mas precisamos aprender como sustentá-la
e como distribuí-la democraticamente. Temos hoje um país onde poucos alunos
vivem na escola do século 21, com laboratórios de ciência, oficinas de artes,
tecnologia, robótica e pedagogias avançadas, e uma imensa maioria frequenta a
escola do século 19. Evidentemente, esse abismo obedece às linhas divisórias de
classe social, o que torna a situação ainda mais trágica. Nosso foco, portanto,
precisa mudar. Já percorremos o mundo atrás de inovação e já acumulamos uma
coleção considerável de novos modelos e ideias. Talvez agora seja o momento de
nos debruçarmos na incômoda e trabalhosa tarefa de pensar em como democratizar
a inovação e dar a toda criança brasileira a chance de aprender usando o que de
melhor as ciências do aprendizado nos trouxeram nos últimos 50 anos,
independentemente de gênero, geografia e classe social.
Destino: educação: escolas inovadoras /
[organização] Fundação Roberto
Marinho, Canal Futura; Anna Penido...[et al.];
prefácio Paulo Blikstein;
Introdução Débora Garcia. — São Paulo:
Fundação Santillana, 2016.
*
quinta-feira, 22 de setembro de 2016
Martini seco, de Fernando Sabino.
Martini seco é uma narrativa policial. Logo em
seu início acontece um crime que permanece inexplicado até ao final. Existe a
possibilidade de que o crime se repita, sendo que novas informações vão gerando
novas possibilidades a cada momento. O texto é dividido em quatro partes,
que delimitam as etapas da história e as transformações ocorridas. Vamos, a seguir, acompanhar cada uma dessas partes.
Primeira parte
Esta parte se inicia com a narrativa do crime
ocorrido em 17 de novembro de 1957. Amadeu Miraglia e sua esposa Carmem entraram
em um bar, sentaram-se e pediram dois martinis. Ela foi ao telefone e ele foi
ao banheiro. Quando retomaram, a mulher tomou a bebida e caiu morta.
Estabelecida a confusão, ninguém sabe como a polícia chegou. Após a hipótese inicial de suicídio. Entretanto logo surgiram as suspeitas de que se tratava de
assassinato. O marido foi considerado como o principal suspeito. Preso, acabou
confessando; mais tarde, em juízo, alegou que fora torturado para confessar e
acabou sendo absolvido da acusação.
Cinco anos depois, Maria, a segunda mulher de Amadeu Miraglia, vai à delegacia apresentar queixa,
porque desconfia que ele quer matá-la e que usará veneno para que o caso termine como o anterior. Amadeu é interrogado e nega tudo. Levanta a hipótese de que ela. Maria, pretende se matar e jogar a culpa nele.
Acrescenta que já está acostumado com este tipo de
injustiça, pois quando criança também foi acusado pelo pai, injustamente, pela morte
de um passarinho.
Segunda parte
Curiosamente, esta parte se inicia da mesma
forma que a primeira, inclusive com a repetição das mesmas palavras. Para
o leitor, fica parecendo que Miraglia e a mulher estão envolvidos num novo assassinato, mas na realidade o que se passa
é a reconstituição do crime. A partir deste
momento, o leitor toma contato com novas informações, que ele terá de juntar às anteriores para compor um quadro de hipóteses coerentes quanto à atitude dos personagens.
Miraglia conta que ia se casar com Carmem e que ela estava grávida. Miraglia diz que o filho não poderia ser seu, pois ele
era estéril. Miraglia explica que Carmem se suicidou
porque não queria admitir que lhe fora infiel. Miraglia
diz que Maria também queria se matar, porque também estava grávida e sabia que o filho era ilegítimo. Em meio a tantas informações, o caso toma vários caminhos, que o detetive Serpa tenta questionar, concluindo
que todas as suspeitas apontam para Miraglia. A história se repete: Maria vai com Miraglia ao bar, toma um Martini e
cai morta.
Terceira
parte
Como se pode ver, esta história acontece como num jogo, o de damas por exemplo, em que novas
possibilidades de jogadas vão acontecendo. O detetive Serpa levanta a hipótese de que Miraglia pretendia se matar, mas que Carmem acaba
tomando o Martini no cálice errado, e que com esse engano acabou
falecendo. Neste momento, Maria lhe telefona para saber se deve tomar o cálice de Martini que Miraglia lhe oferece. Serpa diz que ela deve
beber o outro cálice, o que pode configurar um erro, pois se
Miraglia pretendia se matar, ela, Maria, morreria fatalmente.
Quarta parte
Novamente o leitor é levado a crer num real assassinato, mas que acaba por não ocorrer. Maria não havia morrido e resolve retirar a queixa contra
Miraglia porque se arrependeu, sendo que o caso acabou dado como encerrado. Porém,
uma desconhecida morre, também por envenenamento, no mesmo bar em que ocorreu a
primeira morte, e Serpa, finalmente, tem uma pista concreta em suas mãos. O fato leva Serpa a concluir que uma desconhecida havia tomado
o Martini de Miraglia e morrera, o que confirma que ele pretendia mesmo se
matar.
O final é inconcluso, não deixando que o leitor
tenha qualquer certeza sobre a culpabilidade ou não de Miraglia.
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quinta-feira, 28 de julho de 2016
Dicas para quem precisa escrever corretamente...
Há quem esteja convencido que
escrever bem é só isto: não cometer erros ortográficos.
Ah, se fosse assim tão fácil.
Mas, claro, é muito importante
aprender a evitá-los. Aliás, a minha profissão também persegue esses bichos
feios. E, na verdade, um texto bem escrito com erros ortográficos é como uma
bela casa em que a pintura está toda descascando. Ou alguém que se veste bem,
mas não repara nas manchas da roupa.
Sim, temos de limpar os
textos antes de apresentá-los em público.
Aqui ficam sete dicas (há muitas
outras, mas estas são as que me vieram à cabeça nesta tarde):
1.
A dica das dicas em se tratando da
língua escrita: ler muito. Ler ainda mais. Ler com
atenção. A ortografia também se aprende com o hábito da leitura. Aliás, é a
única forma de ganhar boas bases no âmbito da escrita. Bem, há outra: escrever.
Escrever muito. Repetir a dose durante muitos e bons anos e nunca achar que já sabe
o suficiente.
2.
Perceber que todos nós podemos cometer
erros. Quem acreditar que não corre o
risco de cometer erros, comete-os mais do que cometeria se tomasse uma boa
dose de cautela. E considerando as reações absurdas de algumas pessoas quando
observam os erros dos outros, há quem ande por aí convencido que o mundo se
divide entre os que cometem muitos erros e quem não cometem erro algum. Ah,
mesmo aqueles que dominam a ortografia têm horas dificuldades, escrevem tanto
que às vezes chegam a cometer erros infantis…
3.
Revisar os nossos textos. Sim,
eu sei: é óbvio. Mas se o escrevente tiver demasiada confiança em si próprio
não revisa nada. Confesso aqui, porque estas dicas também são para mim: neste
blog, já me aconteceu dar o “Enter” sem reler o texto. Arrependi-me, quase
sempre. Mais vale reler. Por isso, não é demais repetir: depois de escrever,
convém ler. E o melhor é deixar passar algum tempo. Se estivermos a escrever no
computador, também é certo e sabido que há erros que só aparecerão quando o
texto já estiver impresso. Por fim, sempre que possível, convém pedir a um
amigo de confiança para olhar com atenção para os nossos textos.
Porque os nossos próprios erros têm uma tendência enervante para
serem invisíveis aos nossos olhos.
4.
Consultar obras de referência. A
ortografia é uma das áreas convencionais da língua: há regras relativamente
claras e estas regras vêm explicadas em prontuários e outras obras de
referência. É uma questão de tê-las ao alcance da mão. Outro truque: mesmo quando
não temos dúvidas, é interessante folhear um livro deste tipo e descobrir
pormenores da ortografia que não conhecemos.
5.
Aprender quais são os nossos erros
habituais. Todos nós cometemos um ou outro
erro com um pouco mais frequência do que o habitual. Seria uma boa ideia
procurar esse tipo de erro nos nossos textos. Podemos criar uma lista e tê-la
ao pé do computador. Mas, para que isto ocorra é preciso não estar convencido
que isto só ocorra com os erros dos outros.
6.
Usar o corretor ortográfico do Word. Outro
conselho óbvio, eu sei. Mas já vi tanto texto que merecia uma boa varredura
automática que vale a pena sublinhar o óbvio: os corretores ortográficos
automáticos ajudam a detectar alguns erros. E são fáceis de usar! Querem uma
dica um pouco mais estranha? Ponham o computador para ler o texto (é
possível!). Alguns dos erros que são quase invisíveis aos nossos olhos são
desmascarados quando nos arranham os ouvidos. Um exemplo? A falta de acento nos
ii.
7.
Dar mais atenção aos nossos erros do
que aos erros dos outros. Devemos corrigir os erros dos
outros? Sim, claro: em privado e com delicadeza. Mas viver obcecado com os
erros dos outros só nos deixa mais longe de melhorar o nosso próprio português.
Por isso, passe a olhar com mais afinco para os textos que produzimos. Se
formos exigentes e sarcásticos com os erros dos outros, sejamos ainda mais
exigentes e sarcásticos com os nossos próprios erros.
Disse no início que os erros
ortográficos são um aspecto secundário da língua. Mas a verdade é que se
cumprirmos estas dicas, aprenderemos muito sobre aquilo que é ainda mais
importante: como escrever de forma clara, como estruturar bem as frases, como
criar uma voz própria, como fazer com a língua aquilo que queremos. No fundo,
quem comete muitos erros ortográficos mostra que não lê muito, não revisa os
textos, não quer saber disso. Assim, é normal que os erros apareçam em maus
textos.
Pode acontecer de que bons textos sejam
escritos com muitos erros, mas é raro. A verdade é que os nossos cérebros
estão tão habituados a fazer a associação entre ortografia correta e o bom
português que, por mais qualidade que vejamos no tecido, ligamos mais às manchas.
...
terça-feira, 26 de julho de 2016
O NOVIÇO
Luis Carlos Martins Pena
O noviço traz basicamente a história de Carlos,
rapaz endiabrado, que é enviado a um convento por decisão de sua tia e
tutora. Não tendo vocação para a vida religiosa, Carlos foge do
convento e dedica-se a desmascarar o ambicioso Ambrósio, segundo
marido de sua tia. A seguir organiza-se a sequência de ações que desenvolvem a essência dessa
narrativa.
A peça inicia-se com Ambrósio Nunes em uma
sala ricamente decorada. Preparando-se para ir à igreja com sua mulher Florência, o personagem
afirma em tom cínico que mudara sua vida de homem pobre em oito anos.
Fora miserável, mas valendo-se de determinação, perspicácia e destituído de qualquer
escrúpulo tornara-se
rico, condição que lhe conferia poder e lhe garantia plena impunidade.
É interrompido por
Florência que lhe
apressa, dizendo que é necessário chegar cedo para sentarem-se nos primeiros bancos e,
assim, poderem assistir confortavelmente à missa de Ramos. Ambrósio, com
delicadeza de fala e gestos, pergunta à esposa como anda o projeto de
encaminhar a enteada Emília para o convento e satisfaz-se com a notícia de que tudo
corre como ele desejaria. Com muita habilidade, Ambrósio enfatiza a ideia de que a herança deixada pelo
primeiro marido de Florência nunca o atraiu, revela que sua paixão sempre foi
espontânea e pura e, de
certo modo, lhe é até um tanto penoso administrar a fortuna do nobre falecido,
no entanto, cabe ao marido zelar pela esposa amada. Desse modo, toma para si a
incumbência de cuidar do
dinheiro.
Florência cede às propostas
aparentemente sinceras do marido e concorda em encaminhar não somente a filha
para o claustro, mas também incentivar seu filho Juca de nove anos para ser frade,
acreditando que dessa maneira estaria proporcionando aos dois uma vida virtuosa
e verdadeiramente feliz. Ambrósio, com a intenção deliberada de controlar toda a situação familiar,
mostra-se preocupado com a possibilidade de Carlos, sobrinho tutelado de Florência, vir a se
revoltar contra o noviciado que lhe fora imposto há seis meses e
causar aborrecimentos ao casal. Encerra-se a conversa. Ambrósio retira-se para
acabar de vestir-se. Florência está a agradecer a Deus o marido que tem, quando Emília entra na sala.
A mãe aproveita o
momento para expor à filha as vantagens que a vida de freira proporciona, Emília chora e,
contrariada, declara não ter inclinação para o claustro. A mãe, insensível à dor da filha,
abandona a sala e sobe ao sótão para aprontar-se para a missa.
Inesperadamente, Carlos, vestido de
frade, entra afobado e conta à Emília que havia fugido do convento, após discussão que acabara com
uma barrigada no Abade Mestre. Irado, manifesta o desejo de ser militar, de
envolver-se em lutas com espadas e não se submeter a jejuns prolongados e a
coros e rezas infindáveis. A moça, comovida, ouve o relato dos martírios sofridos pelo
noviço rebelde e lhe
conta que também ela deverá entrar para um convento. Carlos
revolta-se, declara o seu amor pela prima, acusa severamente Ambrósio de estar
conspirando contra todos. Promete que não descansará enquanto não vingar-se do
velhaco Ambrósio. Em meio à conversa, o garoto Juca, desajeitado em um
hábito de frade,
corre para o colo de Carlos, que percebe claramente o plano do marido da tia:
filhos e enteados dedicados à vida religiosa seriam obrigados a fazer votos de pobreza,
o que garantiria a posse de todos os bens por parte de Ambrósio. Emília e Juquinha
saem da sala.
Batem à porta. Rosa entra na sala e com muita
reverência dirige-se a
Carlos, imaginando ser ele um frade. Conta-lhe que está à procura de seu
marido Ambrósio Nunes, que há seis anos a abandonara em Maranguape,
de posse de sua fortuna, a pretexto de investimentos lucrativos em Montevidéu. Sem notícias, ela chegou a
pensar que ele tivesse morrido, mas uma pessoa informara-lhe de que estava o
fujão na corte, e
estava ela ali, no momento, após longa viagem e andanças pelo Rio de Janeiro. Carlos
aproveita-se do engano da mulher e, fingindo ser bom capuchinho, investiga
detalhes da história e recebe, como prova da veracidade dos fatos
relatados, uma cópia da certidão de casamento de Rosa e Ambrósio. Promete ajudá-la e pede-lhe que
aguarde alguns momentos em um quarto da casa. Florência, o marido e a
filha, prontos para saírem, deparam-se com Carlos. Ambrósio cobra de
Carlos obediência. O moço ironicamente desafia o marido da tia
por meio de frases ambíguas, dando a entender que conhecia a história pregressa de
Ambrósio. Este se
enfurece e passa a fazer-lhe exigências. Carlos o toma pelo braço, abre a porta do
quarto e mostra-lhe Rosa. O tio desorganiza-se, corre e arrasta violentamente
para fora da casa mulher e enteada.
Carlos diverte-se com a aflição do cínico tio e expõe à Rosa a atual condição de Ambrósio. A mulher traída não resiste.
Desmaia. Cria-se um alvoroço. Juquinha é chamado a ajudar; apanha um galheteiro,
Carlos a faz cheirar vinagre, azeite, tentando-lhe restituir os sentidos. Em
meio a intensa agitação, ouvem-se meirinhos aproximarem-se. Dirigem-se eles a casa
para efetuarem a prisão do travesso noviço. Carlos faz a mulher acreditar que
Ambrósio é poderoso e que os
oficiais batiam à porta para prendê-la. Propõe a ela que trocassem vestimentas. Rosa
vestiria seu hábito de religioso, e ele, suas vestes de mulher. Desse
modo, estaria ela a salvo da fúria dos meirinhos e ele seria preso em seu lugar. Rosa
ingenuamente aceita a proposta. Juca a encaminha para um quarto. Carlos,
travestido de mulher, recebe dissimuladamente o Mestre de Noviços e os meirinhos.
Faz-se passar por tia do noviço endiabrado, aponta o esconderijo e orienta a maneira
segura de surpreender e prender o sobrinho. Os oficiais entram no quarto,
capturam o falso noviço e o levam para o convento.
Carlos diverte-se imaginando a confusão que aconteceria
quando o Abade percebesse que uma mulher fora presa em seu lugar. Pede a Juca
que ficasse à janela e o avisasse da chegada do padrasto.
Ambrósio, perturbado, invade a sala. Havia
deixado Florência e Emília na igreja. A sua agitação é tamanha que se dirige a Carlos,
pensando ser ele Rosa. O sobrinho aproveita-se do engano e diverte-se,
respondendo às perguntas de Ambrósio como sendo sua primeira esposa.
Chega inclusive a atirar-se aos pés de Ambrósio em pranto exagerado. Nesse
instante, o tratante Ambrósio percebe o equívoco. Irrita-se com o descaramento do
sobrinho, que imediatamente lhe contém a fúria, mostrando a certidão que estava em
seu poder. O tom da cena inverte-se: Ambrósio humilha-se, implora a Carlos que
nada revele à Florência. Dono da situação, o rapaz faz exigências: abandonará o noviciado,
receberá a herança deixada pelo
pai; Emília não será freira, e ele terá o consentimento
para casar-se com a prima. Ambrósio, de joelhos, aceita as imposições e suplica
piedade de Carlos.
Subitamente, Florência e Emília entram na sala
e há novo equívoco: Florência acredita ter
flagrado o marido em traição. Sente-se desgraçada e num assombro se dá conta de que é o sobrinho que
subjuga Ambrósio. Pede explicações para aquela patifaria e,
cinicamente, Carlos afirma que estavam encenando uma comédia para o sábado de Aleluia. A
tia, atônita, ouve ainda o
rapaz trapalhão declarar o acordo que fizera com Ambrósio. Este vai
interrompendo a fala de Carlos com argumentos incontestáveis. Diz à mulher que fora um
erro encaminhá-lo ao convento, pois não se pode impedir que os jovens pudessem
concretizar o amor tão genuíno que sentem. Carlos acrescenta que como prova de
agradecimento cederá metade de seus bens em favor do tio bondoso e lhe entrega
a certidão de casamento
como se entregasse o termo de cessão de parte da fortuna. Ambrósio rasga o papel,
dissimulando total desinteresse pela doação. Florência sente-se abençoada por ter
casado com um homem tão honrado e chega a vangloriar-se da própria capacidade de
distinguir o amante sincero entre tantos pretendentes que tivera logo após a viuvez. Elogia
as qualidades do marido, que insiste não ser merecedor de tanta reverência.
Felizes, Emília e Carlos
acertam o casamento para dali a quinze dias. Nem bem confirmam o enlace
matrimonial, o Mestre dos Noviços surge para efetuar a prisão do noviço fujão. O religioso
declara enraivecido o constrangimento que passara diante do Abade ao cair
novamente em uma cilada de Carlos, quando levou ao convento uma mulher. Diante
das declarações do Mestre, Ambrósio perturba-se e tenta saber do
paradeiro da tal mulher. Florência desconfia das intenções do marido. A confusão está armada: o Mestre
arrasta o noviço para fora da casa; a tia não consegue impedir
a prisão do sobrinho,
mesmo dizendo que Carlos abandonaria a vida religiosa e que ela mesma diria
isso ao Abade.
O clima na casa é de confusão. Ambrósio mostra-se
atordoado, Florência pede explicações para ter sido levada apressadamente
para a igreja e ter sido lá deixada. Ambrósio rapidamente dissimula a própria aflição. Tenta abraçar a esposa que se
revela arredia, exigindo que se esclareça a identidade da mulher que fora presa
em lugar do sobrinho. Acuado, Ambrósio inventa ser a tal mulher uma antiga
namorada, que não se conformara com o fato de ter ele se casado. Confessa
o erro cometido ao envolver-se na juventude com aquela moça. Diz-lhe, no
entanto, que a causa da separação fora o amor incontido que sentiu desde o primeiro
momento que viu Florência. O discurso amoroso de Ambrósio é interrompido por
Rosa, vestida de frade. Esta, entregando a certidão a Ambrósio, interpõe-se ao casal,
gritando que aquele homem lhe pertencia. Ambrósio corre pela casa, tentando escapar.
Nesse momento, ouve-se a ordem de prisão ao bígamo. Enquanto isso se passa, Florência, estarrecida,
lê a certidão de casamento de
Rosa Lemos e Ambrósio Nunes.
Muda-se o cenário. Florência, recolhida no
quarto de Carlos, para evitar contato com o ambiente em que vivera momentos
felizes ao lado do marido farsante, chora convulsivamente e é confortada pela
filha. Está assim prostrada há oito dias. Nada a anima, nem mesmo os
remédios receitados
por um médico da família. Emília afirma ser
necessário que a mãe reaja e, desse
modo, vingue-se de tanta traição. Florência diz que seu procurador está encaminhando um
mandado de prisão e que quer enviar uma carta ao Abade, explicando-lhe os
fatos e pedindo-lhe o favor de mandar um representante do convento para que ela
se justificasse pessoalmente pelos transtornos causados. Decide, então, que o criado
José fosse o portador
da carta.
Nova surpresa: Carlos mais uma vez
havia fugido do claustro. Apressado, invade os fundos da casa, com o hábito roto e sujo,
as mãos esfoladas,
joelhos machucados. Entra em seu antigo quarto. Ouve a voz do padre-mestre,
esconde-se embaixo da cama em que está deitada a tia. Emília acompanha o
padre até os aposentos onde
está Florência, que acorda
meio atordoada. Estava ele incumbido novamente de efetuar a prisão do noviço indomável. Florência e Emília surpreendem-se
com a notícia de que Carlos tivesse escapado novamente das grades
do convento. Enquanto Florência expõe a sua decisão de livrar Carlos do noviciado, Emília percebe a
presença do amado embaixo
da cama. O padre mestre retira-se da casa, aliviado por não ter mais que se
haver com as diabruras de Carlos.
Florência lamenta-se da tragédia que lhe
acometera. Emília se mostra comovida e comporta-se como se não soubesse o
paradeiro do primo, mesmo este lhe puxando as saias e fazendo-lhes cócegas nas pernas.
Chega a casa Ambrósio, trajando-se como um frade, seguindo o criado José até o quarto de Florência. Há novo equívoco. Florência imagina ser o
frade o representante que requisitara ao Abade e passa a lhe contar a trama de
que fora vítima. Ambrósio, não suportando ouvir tantas acusações, denuncia-se,
retirando o capuz, revelando, assim, a sua real identidade. Revela à mulher que as
portas da casa estão trancadas e que ninguém poderá lhe socorrer os gritos. Impõe que lhe entregue
dinheiro e joias, enfim, tudo que ela possuísse; caso contrário, só restaria a
alternativa de matá-la. Nesse momento, se esclarece mais um mal-entendido:
José, fiel a Ambrósio, não tinha enviado a
carta ao Abade, na verdade, tinha facilitado os planos de seu patrão.
Florência corre aos gritos pela casa,
esconde-se em um canto coberta por uma colcha. Ambrósio, na correria,
encontra Carlos, puxa-lhe pelo hábito, pensando tratar-se das saias de
Florência. Carlos
revida com uma bofetada. A tia permanece imóvel, coberta por uma colcha. Em
seguida, entram quatro homens armados e o vizinho Jorge que vinha em socorro
aos gritos que da rua se ouviam. Florência diz que um ladrão travestido de
frade tinha invadido a casa, mas já havia fugido. Os homens vasculham a
casa e acabam dando com Carlos, que aos berros, sai debaixo da cama, e,
tentando proteger-se das agressões, mete-se atrás de um armário e o atira ao
chão. O vizinho,
ferido na perna, grita à Florência que o ladrão se escondia no quarto e havia
escapulido por uma porta. Emília desvencilha-se do vizinho, agradece a ajuda e mando-o
embora. Insiste com a mãe que o frade era Carlos. A mãe retruca,
afirmando que era o padrasto.
A tensão aumenta com a chegada de Rosa, que é recebida com certa
amabilidade por Florência. As duas conversam a sós. Lamentam-se da inocência com que se
entregaram ao vilão Ambrósio. Rosa apresenta à Florência a ordem de prisão contra o bígamo e queixa-se
ao saber que Ambrósio há instantes escapara daquela casa. De modo inesperado,
arrebenta-se uma tábua do armário e Ambrósio, quase
asfixiado, põe a cabeça de fora. Ambas as mulheres atacam-no aos socos e
pauladas. O farsante, aos gritos, suplica compaixão às duas esposas.
Entra no quarto Carlos, preso por Jorge
e os soldados. Florência desfaz o engano, dizendo que era seu sobrinho o que
tomavam por ladrão. Ambrósio esconde-se novamente no armário. Rosa,
acompanhada de oficiais de justiça, entrega o mandado lavrado de prisão. O bígamo é retirado do armário e recebe a
sentença de prisão. O Mestre de
Noviços retorna a casa
com a permissão de livrar Carlos do convento. Antes de retirar-se, o
religioso abençoa a futura união de Emília e Carlos. Ambrósio sai
lamentando-se da punição recebida.
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