segunda-feira, 16 de março de 2015
Sobre o uso do acento indicador da crase
“Tudo vale a pena”
Existem
certas expressões que caem no uso comum, na linguagem do dia-a-dia, e, depois
de certo tempo, repetimos quase mecanicamente. Uma delas é a famosa “Vale a
pena”, em expressões como “Vale a pena ver esse filme”, ou “Não vale a pena ir
ao estádio”.
Que
diabo significa isso? Ora, é muito fácil. Basta verificar no dicionário o que
significa a palavra “pena”. Entre outros sentidos, encontramos no Aurélio: “s.f. 1. Castigo, punição. 2. Sofrimento,
padecimento, aflição.”. Muito bem. Quando se diz que uma coisa vale ou não vale
a pena, o que se quer dizer é que essa coisa vale ou não vale o castigo, a
punição, o sofrimento.
“Castigo”
talvez seja um exagero. Na vida, nada cai do céu. Tudo tem um custo. Tudo dá um
certo trabalho. O que se quer dizer, na verdade, é que a tal coisa vale o
trabalho, o “sacrifício” necessário para realizá-la.
Por
falar nisso, vale a pena relembrar aquele magistral poema de Fernando Pessoa (“Mar
português”), em que o poeta pergunta: “Valeu a pena? Tudo vale a pena, se a
alma não é pequena”.
Superada
a fase do entendimento do significado da expressão, vem outra pergunta: esse “a”
recebe acento indicador de crase? De novo, basta pensar um pouco. O que
representa a forma “à”? O acento grave (sim, acento grave!) é usado para
indicar a ocorrência do fenômeno da crase. Crase é palavra de origem grega.
Significa “fusão, mistura”. Para que ocorra o acento, é necessário que
realmente ocorra a fusão de um “a”, normalmente preposição, com outro “a”,
normalmente um artigo.
Como você
já deve ter deduzido, esse “a” de “Vale a pena” não passa de mísero artigo. Por
quê? Mais uma vez, basta pensar. Substitua a palavra “pena”, feminina, por uma
masculina, como “trabalho, sacrifício”. O que acontece? O artigo feminino “a”
passa a “o”, masculino. Isso é sinal de que não existe preposição. Se houvesse,
na troca do substantivo feminino por um masculino, surgiria a forma “ao” como
em “O livro pertence à ministra / O livro pertence ao ministro”.
É
óbvio, então, que esse bendito “a” de “Vale a pena” é artigo. De uma vez por todas,
o que se quer dizer é que fazer determinada coisa (ver o filme, ir ao estádio,
comprar um disco) vale, compensa, paga, justifica o trabalho, o sacrifício, o
castigo. Então nada de acento indicador de crase, isto é, acento grave.
Nem é
preciso dizer que muitas e muitas vezes essa expressão aparece por aí com o
indevido acento. Não embarque nessa.
Outra
expressão que dá trabalho a muita gente é “à custa de”, quase sempre trocada
erroneamente pela expressão “às custas de”. Em bom português, deve se dizer “Ele
vive à custa do pai”; “Ela conseguiu a vaga à custa de muito sacrifício”.
A
palavra “custas” é usada em linguagem de tribunal, quando alguém é obrigado,
por decisão do juiz, a “pagar as custas”, ou seja, as despesas feitas em
processo judicial. No caso, o “as” é mero artigo e, obviamente, não recebe o
acento indicador de crase. Basta pensar num substantivo masculino equivalente,
como gastos: “pagar os gastos”.
Para
quem quer enriquecer o vocabulário, lá vai uma pérola: em vez de “à custa de”,
pode-se empregar a eruditíssima expressão “a expensas de”. Sim, “a expensas de”,
sem acento indicador de crase. Por quê? Por que “à” equivale a “a” + “a”. E
ninguém vai conseguir encontrar um artigo no singular antes de um substantivo
no plural. Esse “a” de “a expensas” não passa de preposição, portanto nem
pensar em acento indicador de crase.
O
fato é que, pela velha história da contaminação lingüística, ocorre uma grande
confusão, e as pessoas acabam trocando tudo. Aparecem as expressões “às custas
de”, “às expensas de” etc. Cuidado! É bom repetir: “à custa de”, “a expensas de”.
Expressões
como essas valem um bom e interminável papo. E muita confusão. Um dia, voltamos
ao assunto.
Até a
próxima. Um forte abraço.
Pasquale Cipro Neto
MARÇO .1998
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