terça-feira, 17 de março de 2015
A carta de Pero Vaz de Caminha
Senhor,
posto
que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a
Vossa Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova, que se agora nesta
navegação achou, não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza,
assim como eu melhor puder, ainda que — para o bem contar e falar — o saiba
pior que todos fazer!
Todavia
tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo creia que,
para aformosentar nem afear, aqui não há de pôr mais do que aquilo que vi e me
pareceu.
Da
marinhagem e das singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza — porque
o não saberei fazer — e os pilotos devem ter este cuidado.
E
portanto, Senhor, do que hei de falar começo:
E
digo quê:
A
partida de Belém foi — como Vossa Alteza sabe, segunda-feira 9 de março. E
sábado, 14 do dito mês, entre as 8 e 9 horas, nos achamos entre as Canárias,
mais perto da Grande Canária. E ali andamos todo aquele dia em calma, à vista
delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas
mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, a saber da ilha de São
Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.
Na
noite seguinte à segunda-feira amanheceu, se perdeu da frota Vasco de Ataíde
com a sua nau, sem haver tempo forte ou contrário para poder ser!
Fez
o capitão suas diligências para o achar, em umas e outras partes. Mas... não
apareceu mais!
E
assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das
Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra,
estando da dita Ilha — segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas — os
quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam
botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira
seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam furabuchos.
Neste
mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente
de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul
dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o
nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!
Mandou
lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças. E ao sol-posto umas seis léguas
da terra, lançamos ancoras, em dezenove braças — ancoragem limpa. Ali
ficamo-nos toda aquela noite. E quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e
seguimos em direitura à terra, indo os navios pequenos diante — por dezessete,
dezesseis, quinze, catorze, doze, nove braças — até meia légua da terra, onde
todos lançamos ancoras, em frente da boca de um rio. E chegaríamos a esta
ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos.
E
dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete ou oito, segundo
disseram os navios pequenos que chegaram primeiro.
Então
lançamos fora os batéis e esquifes. E logo vieram todos os capitães das naus a
esta nau do Capitão-mor. E ali falaram. E o Capitão mandou em terra a Nicolau
Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou a ir-se para lá, acudiram
pela praia homens aos dois e aos três, de maneira que, quando o batel chegou à
boca do rio, já lá estavam dezoito ou vinte.
Pardos,
nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos,
e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes
fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver
fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente
arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça,
e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave,
compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E
outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que querem parecer
de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto
se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do
mar.
À
noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus. E
especialmente a Capitanisol-postoa. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco
mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar ancoras e
fazer vela. E fomos de longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados na
popa, em direção norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde
nós ficássemos, para tomar água e lenha. Não por nos já minguar, mas por nos
prevenirmos aqui. E quando fizemos vela estariam já na praia assentados perto
do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali aos poucos.
Fomos ao longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que fossem mais chegados
à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.
E
velejando nós pela costa, na distância de dez léguas do sítio onde tínhamos
levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto
dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se
dentro e amainaram. E as naus foram-se chegando, atrás deles. E um pouco antes
de sol-posto amainaram também, talvez a uma légua do recife, e ancoraram a onze
braças.
E
estando Afonso Lopez, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, foi, por
mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meter-se logo no
esquife a sondar o porto dentro. E tomou dois daqueles homens da terra que
estavam numa almadia: mancebos e de bons corpos. Um deles trazia um arco, e
seis ou sete setas. E na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas não
os aproveitou. Logo, já de noite, levou-os à Capitaina, onde foram recebidos
com muito prazer e festa.
A
feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons
narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de
encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca
disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido
nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de
um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de
dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a
modo de roque de xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa,
nem lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber.
Os
cabelos deles são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta antes do que
sobre-pente, de boa grandeza, rapados todavia por cima das orelhas. E um deles
trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na parte detrás, uma espécie de
cabeleira, de penas de ave amarela, que seria do comprimento de um coto, mui
basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos
cabelos, pena por pena, com uma confeição branda como, de maneira tal que a
cabeleira era mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais
lavagem para a levantar.
O
Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos pés uma
alcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao
pescoço. E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires
Corrêa, e nós outros que aqui na nau com ele íamos, sentados no chão, nessa
alcatifa. Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia
fizeram, nem de falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar
do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois
para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também
olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente
para o castiçal, como se lá também houvesse prata!
Mostraram-lhes
um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram
para a terra, como se os houvesse ali.
Mostraram-lhes
um carneiro; não fizeram caso dele.
Mostraram-lhes
uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe
pegaram, mas como espantados.
Deram-lhes
ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos passados. Não
quiseram comer daquilo quase nada; e se provavam alguma coisa, logo a lançavam
fora.
Trouxeram-lhes
vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram dele nada, nem quiseram
mais.
Trouxeram-lhes
água em uma albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas não beberam; apenas
lavaram as bocas e lançaram-na fora.
Viu
um deles umas contas de rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e folgou
muito com elas, e lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em volta
do braço, e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do
Capitão, como se dariam ouro por aquilo.
Isto
tomávamos nós nesse sentido, por assim o desejarmos! Mas se ele queria dizer
que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, por que
lho não havíamos de dar! E depois tornou as contas a quem lhas dera. E então
estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir sem procurarem maneiras de
encobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas
estavam bem rapadas e feitas.
O
Capitão mandou pôr por baixo da cabeça de cada um seu coxim; e o da cabeleira
esforçava-se por não a estragar. E deitaram um manto por cima deles; e
consentindo, aconchegaram-se e adormeceram.
Sábado
pela manhã mandou o Capitão fazer vela, fomos demandar a entrada, a qual era
mui larga e tinha seis a sete braças de fundo. E entraram todas as naus dentro,
e ancoraram em cinco ou seis braças — ancoradouro que é tão grande e tão formoso
de dentro, e tão seguro que podem ficar nele mais de duzentos navios e naus. E
tanto que as naus foram distribuídas e ancoradas, vieram os capitães todos a
esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão que Nicolau Coelho e
Bartolomeu Dias fossem em terra e levassem aqueles dois homens, e os deixassem
ir com seu arco e setas, aos quais mandou dar a cada um uma camisa nova e uma
carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que foram levando nos
braços, e um cascavel e uma campainha. E mandou com eles, para lá ficar, um
mancebo degredado, criado de dom João Telo, de nome Afonso Ribeiro, para lá
andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com
Nicolau Coelho. Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo perto
de duzentos homens, todos nus, com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós
levamos acenaram-lhes que se afastassem e depusessem os arcos. E eles os
depuseram. Mas não se afastaram muito. E mal tinham pousado seus arcos quando
saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não
pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais
correria. E passaram um rio que aí corre, de água doce, de muita água que lhes
dava pela braga. E muitos outros com eles. E foram assim correndo para além do
rio entre umas moitas de palmeiras onde estavam outros. E ali pararam. E
naquilo tinha ido o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o
agasalhou e levou até lá. Mas logo o tornaram a nós. E com ele vieram os outros
que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.
E
então se começaram de chegar muitos; e entravam pela beira do mar para os
batéis, até que mais não podiam. E traziam cabaças d'água, e tomavam alguns
barris que nós levávamos e enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não
que eles de todo chegassem a bordo do batel. Mas junto a ele, lançavam-nos da
mão. E nós tomávamo-los. E pediam que lhes dessem alguma coisa.
Levava
Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, e a outros uma
manilha, de maneira que com aquela encarna quase que nos queriam dar a mão.
Davam-nos daqueles arcos e setas em troca de sombreiros e carapuças de linho, e
de qualquer coisa que a gente lhes queria dar.
Dali
se partiram os outros, dois mancebos, que não os vimos mais.
Dos
que ali andavam, muitos — quase a maior parte — traziam aqueles bicos de osso
nos beiços.
E
alguns, que andavam sem eles, traziam os beiços furados e nos buracos traziam
uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha. E alguns deles traziam
três daqueles bicos, a saber um no meio, e os dois nos cabos.
E
andavam lá outros, quartejados de cores, a saber metade deles da sua própria
cor, e metade de tintura preta, um tanto azulada; e outros quartejados
d'escaques.
Ali
andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos
muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão
cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não
se envergonhavam.
Ali
por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbaria deles
ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém. Acenamos-lhes que se fossem.
E assim o fizeram e passaram-se para além do rio. E saíram três ou quatro
homens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos barris d'água que nós
levávamos. E tornamo-nos às naus. E quando assim vínhamos, acenaram-nos que
voltássemos. Voltamos, e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse
lá com eles, o qual levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas
para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não trataram de lhe tirar coisa
alguma, antes mandaram-no com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez
tornar, que lhe desse aquilo. E ele tornou e deu aquilo, em vista de nós, a
aquele que o da primeira agasalhara. E então veio-se, e nós levamo-lo.
Esse
que o agasalhou era já de idade, e andava por galanteria, cheio de penas,
pegadas pelo corpo, que parecia seteado como São Sebastião. Outros traziam
carapuças de penas amarelas; e outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma
daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era
tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres
de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como
ela. Nenhum deles era fanado, mas todos assim como nós.
E
com isto nos tornamos, e eles foram-se.
À
tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros capitães das naus em
seus batéis a folgar pela baía, perto da praia. Mas ninguém saiu em terra, por
o Capitão o não querer, apesar de ninguém estar nela. Apenas saiu — ele com
todos nós — em um ilhéu grande que está na baía, o qual, aquando baixamar, fica
mui vazio. Com tudo está de todas as partes cercado de água, de sorte que ninguém
lá pode ir, a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele, e todos nós, bem uma
hora e meia. E pescaram lá, andando alguns marinheiros com um chinchorro; e
mataram peixe miúdo, não muito. E depois volvemo-nos às naus, já bem noite.
Ao
domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão ir ouvir missa e sermão
naquele ilhéu. E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos batéis e
fossem com ele. E assim foi feito. Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu, e
dentro levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos nós outros fez
dizer missa, a qual disse o padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com
aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que todos assistiram, a qual
missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.
Ali
estava com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saíra de Belém, a qual
esteve sempre bem alta, da parte do Evangelho.
Acabada
a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados
por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação, da história
evangélica; e no fim tratou da nossa vida, e do achamento desta terra,
referindo-se à Cruz, sob cuja obediência viemos, que veio muito a propósito, e
fez muita devoção.
Enquanto
assistimos à missa e ao sermão, estaria na praia outra tanta gente, pouco mais
ou menos, como a de ontem, com seus arcos e setas, e andava folgando. E
olhando-nos, sentaram. E depois de acabada a missa, quando nós sentados
atendíamos a pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e
começaram a saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias — duas
ou três que lá tinham — as quais não são feitas como as que eu vi; apenas são
três traves, atadas juntas. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que
queriam, não se afastando quase nada da terra, só até onde podiam tomar pé.
Acabada
a pregação encaminhou-se o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa
bandeira alta. Embarcamos e fomos indo todos em direção à terra para passarmos
ao longo por onde eles estavam, indo na dianteira, por ordem do Capitão,
Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar
levara, para o entregar a eles. E nós todos trás dele, a distância de um tiro
de pedra.
Como
viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se
nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos e muitos deles
os iam logo pôr em terra; e outros não os punham.
Andava
lá um que falava muito aos outros, que se afastassem. Mas não já que a mim me
parecesse que lhe tinham respeito ou medo. Este que os assim andava afastando
trazia seu arco e setas. Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos e costas
e pelos quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e
estômago eram de sua própria cor. E a tintura era tão vermelha que a água lha
não comia nem desfazia. Antes, quando saía da água, era mais vermelho. Saiu um
homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava no meio deles, sem implicarem nada
com ele, e muito menos ainda pensavam em fazer-lhe mal. Apenas lhe davam
cabaças d'água; e acenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isto se
volveu Bartolomeu Dias ao Capitão. E viemo-nos às naus, a comer, tangendo
trombetas e gaitas, sem os mais constranger. E eles tornaram-se a sentar na praia,
e assim por então ficaram.
Neste
ilhéu, onde fomos ouvir missa e sermão, espraia muito a água e descobre muita
areia e muito cascalho. Enquanto lá estávamos foram alguns buscar marisco e não
no acharam. Mas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha
um muito grande e muito grosso; que em nenhum tempo o vi tamanho. Também
acharam cascas de berbigões e de amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça
inteira. E depois de termos comido vieram logo todos os capitães a esta nau,
por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se aportou; e eu na companhia. E
perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a
Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor mandar descobrir e saber
dela mais do que nós podíamos saber, por irmos na nossa viagem.
E
entre muitas falas que sobre o caso se fizeram foi dito, por todos ou a maior
parte, que seria muito bem. E nisto concordaram. E logo que a resolução foi
tomada, perguntou mais, se seria bem tomar aqui por força um par destes homens
para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui em lugar deles outros dois destes
degredados.
E
concordaram em que não era necessário tomar por força homens, porque costume
era dos que assim à força levavam para alguma parte dizerem que há de tudo
quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam
dois homens desses degredados que aqui deixássemos do que eles dariam se os
levassem por ser gente que ninguém entende. Nem eles cedo aprenderiam a falar
para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam quando cá
Vossa Alteza mandar.
E
que portanto não cuidássemos de aqui por força tomar ninguém, nem fazer
escândalo; mas sim, para os de todo amansar e apaziguar, unicamente de deixar
aqui os dois degredados quando daqui partíssemos.
E
assim ficou determinado por parecer melhor a todos.
Acabado
isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra. E ver-se-ia bem,
quejando era o rio. Mas também para folgarmos.
Fomos
todos nos batéis em terra, armados; e a bandeira conosco. Eles andavam ali na
praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo
ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenaram que saíssemos.
Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além
do rio, o qual não é mais ancho que um jogo de mancal. E tanto que
desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles.
E alguns aguardavam; e outros se afastavam. Com tudo, a coisa era de maneira
que todos andavam misturados. Eles davam desses arcos com suas setas por
sombreiros e carapuças de linho, e por qualquer coisa que lhes davam. Passaram
além tantos dos nossos e andaram assim misturados com eles, que eles se
esquivavam, e afastavam-se; e iam alguns para cima, onde outros estavam. E
então o Capitão fez que o tomassem ao colo dois homens e passou o rio, e fez
tornar a todos. A gente que ali estava não seria mais que aquela do costume.
Mas logo que o Capitão chamou todos para trás, alguns se chegaram a ele, não
por o reconhecerem por Senhor, mas porque a gente, nossa, já passava para aquém
do rio. Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas, daquelas já ditas, e
resgatavam-nas por qualquer coisa, de tal maneira que os nossos levavam dali
para as naus muitos arcos, e setas e contas.
E
então tornou-se o Capitão para aquém do rio. E logo acudiram muitos à beira
dele.
Ali
veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim pelos
corpos como pelas pernas, que, certo, assim pareciam bem. Também andavam entre
eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal. Entre
elas andava uma, com uma coxa, do joelho até o quadril e a nádega, toda tingida
daquela tintura preta; e todo o resto da sua cor natural. Outra trazia ambos os
joelhos com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas
tão nuas, e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso
desvergonha nenhuma.
Também
andava lá outra mulher, nova, com um menino ou menina, atado com um pano aos
peitos, de modo que não se lhe viam senão as perninhas. Mas nas pernas da mãe,
e no resto, não havia pano algum.
Em
seguida o Capitão foi subindo ao longo do rio, que corre rente à praia. E ali
esperou por um velho que trazia na mão uma pá de almadia. Falou, enquanto o
Capitão estava com ele, na presença de todos nós; mas ninguém o entendia, nem
ele a nós, por mais coisas que a gente lhe perguntava com respeito a ouro,
porque desejávamos saber se o havia na terra.
Trazia
este velho o beiço tão furado que lhe cabia pelo buraco um grosso dedo polegar.
E trazia metido no buraco uma pedra verde, de nenhum valor, que fechava por
fora aquele buraco. E o Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e
ia com ela para a boca do Capitão para lha meter. Estivemos rindo um pouco e
dizendo chalaças sobre isso. E então enfadou-se o Capitão, e deixou-o. E um dos
nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho; não por ela valer alguma coisa,
mas para amostra. E depois houve-a o Capitão, creio, para mandar com as outras
coisas a Vossa Alteza.
Andamos
por aí vendo o ribeiro, o qual é de muita água e muito boa. Ao longo dele há
muitas palmeiras, não muito altas; e muito bons palmitos. Colhemos e comemos
muitos deles.
Depois
tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde tínhamos desembarcado.
E
além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante os outros, sem
se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então para a outra banda do
rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de
prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar
com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito
bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando
no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. E
conquanto com aquilo os segurou e afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como
de animais monteses, e foram-se para cima.
E
então passou o rio o Capitão com todos nós, e fomos pela praia, de longo, ao
passo que os batéis iam rentes à terra. E chegamos a uma grande lagoa de água
doce que está perto da praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por
cima e sai a água por muitos lugares.
E
depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles meter-se entre os
marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão que
Bartolomeu Dias matou. E levavam-lho; e lançou-o na praia.
Bastará
que até aqui, como quer que se lhes em alguma parte amansassem, logo de uma mão
para outra se esquivavam, como pardais do cevadouro. Ninguém não lhes ousa
falar de rijo para não se esquivarem mais. E tudo se passa como eles querem — para
os bem amansarmos!
Ao
velho com quem o Capitão havia falado, deu-lhe uma carapuça vermelha. E com
toda a conversa que com ele houve, e com a carapuça que lhe deu tanto que se
despediu e começou a passar o rio, foi-se logo recatando. E não quis mais
tornar do rio para aquém. Os outros dois o Capitão teve nas naus, aos quais deu
o que já ficou dito, nunca mais aqui apareceram — fatos de que deduzo que é
gente bestial e de pouco saber, e por isso tão esquiva. Mas apesar de tudo isso
andam bem curados, e muito limpos. E naquilo ainda mais me convenço que são
como aves, ou alimárias montesinhas, as quais o ar faz melhores penas e melhor
cabelo que às mansas, porque os seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão
formosos que não pode ser mais! E isto me faz presumir que não tem casas nem
moradias em que se recolham; e o ar em que se criam os faz tais. Nós pelo menos
não vimos até agora nenhumas casas, nem coisa que se pareça com elas.
Mandou
o Capitão aquele degredado, Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. E
foi; e andou lá um bom pedaço, mas a tarde regressou, que o fizeram eles vir: e
não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nada
do seu. Antes, disse ele, que lhe tomara um deles umas continhas amarelas que
levava e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após ele, e
lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira
lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de feteiras muito
grandes, como as de Entre-Douro-e-Minho. E assim nos tornamos às naus, já quase
noite, a dormir.
Segunda-feira,
depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos;
mas não tantos como as outras vezes. E traziam já muito poucos arcos. E
estiveram um pouco afastados de nós; mas depois pouco a pouco misturaram-se
conosco; e abraçavam-nos e folgavam; mas alguns deles se esquivavam logo. Ali
davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha e por
qualquer coisa. E de tal maneira se passou a coisa que bem vinte ou trinta
pessoas das nossas se foram com eles para onde outros muitos deles estavam com
moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves,
uns verdes, outros amarelos, dos quais creio que o Capitão há de mandar uma
amostra a Vossa Alteza.
E
segundo diziam esses que lá tinham ido, brincaram com eles. Neste dia os vimos
mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados: uns
andavam quartejados daquelas tinturas, outros de metades, outros de tanta
feição como em pano de ras, e todos com os beiços furados, muitos com os ossos
neles, e bastantes sem ossos. Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores,
que na cor queriam parecer de castanheiras, embora fossem muito mais pequenos.
E estavam cheios de uns grãos vermelhos, pequeninos que, esmagando-se entre os
dedos, se desfaziam na tinta muito vermelha de que andavam tingidos. E quanto
mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.
Todos
andam rapados até por cima das orelhas; assim mesmo de sobrancelhas e pestanas.
Trazem
todos as testas, de fonte a fonte, tintas de tintura preta, que parece uma fita
preta da largura de dois dedos.
E
o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados que
fossem meter-se entre eles; e assim mesmo a Diogo Dias, por ser homem alegre,
com que eles folgavam. E aos degredados ordenou que ficassem lá esta noite.
Foram-se
lá todos; e andaram entre eles. E segundo depois diziam, foram bem uma légua e
meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais diziam que eram
tão compridas, cada uma, como esta nau capitaina. E eram de madeira, e das ilhargas
de tábuas, e cobertas de palha, de razoável altura; e todas de um só espaço,
sem repartição alguma, tinham de dentro muitos esteios; e de esteio a esteio
uma rede atada com cabos em cada esteio, altas, em que dormiam. E de baixo,
para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas,
uma numa extremidade, e outra na oposta. E diziam que em cada casa se recolhiam
trinta ou quarenta pessoas, e que assim os encontraram; e que lhes deram de
comer dos alimentos que tinham, a saber muito inhame, e outras sementes que na
terra dá, que eles comem. E como se fazia tarde fizeram-nos logo todos tornar;
e não quiseram que lá ficasse nenhum. E ainda, segundo diziam, queriam vir com
eles. Resgataram lá por cascavéis e outras coisinhas de pouco valor, que
levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes
pequeninos, e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores,
espécie de tecido assaz belo, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá,
porque o Capitão vô-las há de mandar, segundo ele disse. E com isto vieram; e
nós tornamo-nos às naus.
Terça-feira,
depois de comer, fomos em terra, fazer lenha, e para lavar roupa. Estavam na
praia, quando chegamos, uns sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada. Tanto
que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. E depois acudiram
muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos. E misturaram-se todos tanto
conosco que uns nos ajudavam a acarretar lenha e metê-las nos batéis. E lutavam
com os nossos, e tomavam com prazer. E enquanto fazíamos a lenha, construíam
dois carpinteiros uma grande cruz de um pau que se ontem para isso cortara.
Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais
para verem a ferramenta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz,
porque eles não têm coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com
pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e
por tal maneira que andam fortes, porque lhas viram lá. Era já a conversação deles
conosco tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.
E
o Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia e que
de modo algum viessem a dormir às naus, ainda que os mandassem embora. E assim
se foram.
Enquanto
andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios essas
árvores; verdes uns, e pardos, outros, grandes e pequenos, de sorte que me
parece que haverá muitos nesta terra. Todavia os que vi não seriam mais que
nove ou dez, quando muito. Outras aves não vimos então, a não ser algumas
pombas-seixeiras, e pareceram-me maiores bastante do que as de Portugal. Vários
diziam que viram rolas, mas eu não as vi. Todavia segundo os arvoredos são mui
muitos e grandes, e de infinitas espécies, não duvido que por esse sertão haja
muitas aves!
E
cerca da noite nós volvemos para as naus com nossa lenha.
Eu
creio, Senhor, que não dei ainda conta aqui a Vossa Alteza do feitio de seus
arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, e as setas compridas; e os
ferros delas são canas aparadas, conforme Vossa Alteza verá alguns que creio
que o Capitão a Ela há de enviar.
Quarta-feira
não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos
a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada um podia levar. Eles acudiram
à praia, muitos, segundo das naus vimos. Seriam perto de trezentos, segundo
Sancho de Tovar que para lá foi. Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos
quais o Capitão ontem ordenara que de toda maneira lá dormissem, tinham voltado
já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. E traziam papagaios verdes;
e outras aves pretas, quase como pegas, com a diferença de terem o bico branco
e rabos curtos. E quando Sancho de Tovar recolheu à nau, queriam vir com ele,
alguns; mas ele não admitiu senão dois mancebos, bem dispostos e homens de
prol. Mandou pensar e curá-los mui bem essa noite. E comeram toda a ração que
lhes deram, e mandou dar-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. E dormiram e
folgaram aquela noite. E não houve mais este dia que para escrever seja.
Quinta-feira,
derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais
lenha e água. E em querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar
com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas, e
veio-lhe comida. E comeu. Os hóspedes, sentaram-no cada um em sua cadeira. E de
tudo quanto lhes deram, comeram mui bem, especialmente lacão cozido frio, e
arroz. Não lhes deram vinho por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.
Acabado
o comer, metemo-nos todos no batel, e eles conosco. Deu um grumete a um deles
uma armadura grande de porco montês, bem revolta. E logo que a tomou meteu-a no
beiço; e porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pouca de cera
vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço da parte de trás de sorte que
segurasse, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima; e ia tão contente com
ela, como se tivesse uma grande joia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo
com ela. E não tornou a aparecer lá.
Andariam
na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir. E
parece-me que viriam este dia a praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta.
Alguns deles traziam arcos e setas; e deram tudo em troca de carapuças e por
qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos, e alguns
deles bebiam vinho, ao passo que outros o não podiam beber. Mas quer-me parecer
que, se os acostumarem, o hão de beber de boa vontade! Andavam todos tão bem
dispostos e tão bem feitos e galantes com suas pinturas que agradavam.
Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mil boas vontades, e levavam-na aos
batéis. E estavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós estávamos entre
eles.
Foi
o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até um ribeiro grande,
e de muita água, que ao nosso parecer é o mesmo que vem ter à praia, em que nós
tomamos água. Ali descansamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dele,
entre esse arvoredo que é tanto e tamanho e tão basto e de tanta qualidade de folhagem
que não se pode calcular. Há lá muitas palmeiras, de que colhemos muitos e bons
palmitos.
Ao
sairmos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos em direitura à cruz que
estava encostada a uma árvore, junto ao rio, a fim de ser colocada amanhã, sexta-feira,
e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o
acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. E a esses dez ou doze que lá
estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo foram todos beijá-la.
Parece-me
gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa,
seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as
aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a
sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa
Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso
Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade.
E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez
que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o
Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza,
pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles.
E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!
Eles
não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou
qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não comem
senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a
terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios
que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.
Nesse
dia, enquanto ali andavam, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de
um tamboril nosso, como se fossem mais amigos nossos do que nós seus. Se lhes a
gente acenava, se queriam vir às naus, aprontavam-se logo para isso, de modo
tal, que se os convidáramos a todos, todos vieram. Porém não levamos esta noite
às naus senão quatro ou cinco; a saber, o Capitão-mor, dois; e Simão de
Miranda, um que já trazia por pajem; e Aires Gomes a outro, pajem também. Os
que o Capitão trazia, era um deles um dos seus hóspedes que lhe haviam trazido
a primeira vez quando aqui chegamos -- o qual veio hoje aqui vestido na sua
camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados tanto de
comida como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar.
E
hoje que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra com
nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio, contra o sul onde nos pareceu
que seria melhor arvorar a cruz, para melhor ser vista. E ali marcou o Capitão
o sítio onde haviam de fazer a cova para a fincar. E enquanto a iam abrindo,
ele com todos nós outros fomos pela cruz, rio abaixo onde ela estava. E com os
religiosos e sacerdotes que cantavam, à frente, fomos trazendo-a dali, a modo
de procissão. Eram já aí quantidade deles, uns setenta ou oitenta; e quando nos
assim viram chegar, alguns se foram meter debaixo dela, ajudar-nos. Passamos o
rio, ao longo da praia; e fomos colocá-la onde havia de ficar, que será obra de
dois tiros de besta do rio. Andando-se ali nisto, viriam bem cento cinqüenta,
ou mais. Plantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro
lhe haviam pregado, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei
Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram
conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelho
assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé,
com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos, estando
assim até se chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E quando
levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim como nós
estávamos, com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a
Vossa Alteza que nos fez muita devoção.
Estiveram
assim conosco até acabada a comunhão; e depois da comunhão, comungaram esses
religiosos e sacerdotes; e o Capitão com alguns de nós outros. E alguns deles,
por o Sol ser grande, levantaram-se enquanto estávamos comungando, e outros
estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, se
conservou ali com aqueles que ficaram. Esse, enquanto assim estávamos, juntava
aqueles que ali tinham ficado, e ainda chamava outros. E andando assim entre
eles, falando-lhes, acenou com o dedo para o altar, e depois mostrou com o dedo
para o céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos!
Acabada
a missa, tirou o padre a vestimenta de cima, e ficou na alva; e assim se subiu,
junto ao altar, em uma cadeira; e ali nos pregou o Evangelho e dos Apóstolos
cujo é o dia, tratando no fim da pregação desse vosso prosseguimento tão santo
e virtuoso, que nos causou mais devoção.
Esses
que estiveram sempre à pregação estavam assim como nós olhando para ele. E
aquele que digo, chamava alguns, que viessem ali. Alguns vinham e outros
iam-se; e acabada a pregação, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho
com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda. E houveram por bem que
lançassem a cada um sua ao pescoço. Por essa causa se assentou o padre frei
Henrique ao pé da cruz; e ali lançava a sua a todos — um a um — ao pescoço,
atada em um fio, fazendo-lha primeiro beijar e levantar as mãos. Vinham a isso
muitos; e lançavam-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinquenta. E isto
acabado — era já bem uma hora depois do meio dia — viemos às naus a comer, onde
o Capitão trouxe consigo aquele mesmo que fez aos outros aquele gesto para o
altar e para o céu, (e um seu irmão com ele). A aquele fez muita honra e
deu-lhe uma camisa mourisca; e ao outro uma camisa destoutras.
E
segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa
para ser toda cristã, do que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo que
nos viam fazer como nós mesmos; por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria
nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles
mais devagar ande, que todos serão tornados e convertidos ao desejo de Vossa
Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os
batizar; porque já então terão mais conhecimentos de nossa fé, pelos dois
degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram.
Entre
todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher, moça, a qual esteve
sempre à missa, à qual deram um pano com que se cobrisse; e puseram-lho em
volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de o estender muito para se
cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria
maior — com respeito ao pudor.
Ora
veja Vossa Alteza quem em tal inocência vive se convertera, ou não, se lhe
ensinarem o que pertence à sua salvação.
Acabado
isto, fomos perante eles beijar a cruz. E despedimo-nos e fomos comer.
Creio,
Senhor, que, com estes dois degredados que aqui ficam, ficarão mais dois
grumetes, que esta noite se saíram em terra, desta nau, no esquife, fugidos, os
quais não vieram mais. E cremos que ficarão aqui porque de manhã, prazendo a
Deus fazemos nossa partida daqui.
Esta
terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até à outra
ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será
tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Traz ao
longo do mar em algumas partes grandes barreiras, umas vermelhas, e outras
brancas; e a terra de cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta
a ponta é toda praia... muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu,
vista do mar, muito grande; porque a estender olhos, não podíamos ver senão
terra e arvoredos — terra que nos parecia muito extensa.
Até
agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou
ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e
temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os
achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa
que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!
Contudo,
o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E
esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que
não houvesse mais do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa navegação
de Calicute bastava. Quanto mais, disposição para se nela cumprir e fazer o que
Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa fé!
E
desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta Vossa terra vi. E se a
um pouco alonguei, Ela me perdoe. Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer,
mo fez pôr assim pelo miúdo.
E
pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer
coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem
servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São
Tomé a Jorge de Osório, meu genro — o que d'Ela receberei em muita mercê.
Beijo
as mãos de Vossa Alteza.
Deste
Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de
maio de 1500.
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segunda-feira, 16 de março de 2015
Sobre o uso do acento indicador da crase
“Tudo vale a pena”
Existem
certas expressões que caem no uso comum, na linguagem do dia-a-dia, e, depois
de certo tempo, repetimos quase mecanicamente. Uma delas é a famosa “Vale a
pena”, em expressões como “Vale a pena ver esse filme”, ou “Não vale a pena ir
ao estádio”.
Que
diabo significa isso? Ora, é muito fácil. Basta verificar no dicionário o que
significa a palavra “pena”. Entre outros sentidos, encontramos no Aurélio: “s.f. 1. Castigo, punição. 2. Sofrimento,
padecimento, aflição.”. Muito bem. Quando se diz que uma coisa vale ou não vale
a pena, o que se quer dizer é que essa coisa vale ou não vale o castigo, a
punição, o sofrimento.
“Castigo”
talvez seja um exagero. Na vida, nada cai do céu. Tudo tem um custo. Tudo dá um
certo trabalho. O que se quer dizer, na verdade, é que a tal coisa vale o
trabalho, o “sacrifício” necessário para realizá-la.
Por
falar nisso, vale a pena relembrar aquele magistral poema de Fernando Pessoa (“Mar
português”), em que o poeta pergunta: “Valeu a pena? Tudo vale a pena, se a
alma não é pequena”.
Superada
a fase do entendimento do significado da expressão, vem outra pergunta: esse “a”
recebe acento indicador de crase? De novo, basta pensar um pouco. O que
representa a forma “à”? O acento grave (sim, acento grave!) é usado para
indicar a ocorrência do fenômeno da crase. Crase é palavra de origem grega.
Significa “fusão, mistura”. Para que ocorra o acento, é necessário que
realmente ocorra a fusão de um “a”, normalmente preposição, com outro “a”,
normalmente um artigo.
Como você
já deve ter deduzido, esse “a” de “Vale a pena” não passa de mísero artigo. Por
quê? Mais uma vez, basta pensar. Substitua a palavra “pena”, feminina, por uma
masculina, como “trabalho, sacrifício”. O que acontece? O artigo feminino “a”
passa a “o”, masculino. Isso é sinal de que não existe preposição. Se houvesse,
na troca do substantivo feminino por um masculino, surgiria a forma “ao” como
em “O livro pertence à ministra / O livro pertence ao ministro”.
É
óbvio, então, que esse bendito “a” de “Vale a pena” é artigo. De uma vez por todas,
o que se quer dizer é que fazer determinada coisa (ver o filme, ir ao estádio,
comprar um disco) vale, compensa, paga, justifica o trabalho, o sacrifício, o
castigo. Então nada de acento indicador de crase, isto é, acento grave.
Nem é
preciso dizer que muitas e muitas vezes essa expressão aparece por aí com o
indevido acento. Não embarque nessa.
Outra
expressão que dá trabalho a muita gente é “à custa de”, quase sempre trocada
erroneamente pela expressão “às custas de”. Em bom português, deve se dizer “Ele
vive à custa do pai”; “Ela conseguiu a vaga à custa de muito sacrifício”.
A
palavra “custas” é usada em linguagem de tribunal, quando alguém é obrigado,
por decisão do juiz, a “pagar as custas”, ou seja, as despesas feitas em
processo judicial. No caso, o “as” é mero artigo e, obviamente, não recebe o
acento indicador de crase. Basta pensar num substantivo masculino equivalente,
como gastos: “pagar os gastos”.
Para
quem quer enriquecer o vocabulário, lá vai uma pérola: em vez de “à custa de”,
pode-se empregar a eruditíssima expressão “a expensas de”. Sim, “a expensas de”,
sem acento indicador de crase. Por quê? Por que “à” equivale a “a” + “a”. E
ninguém vai conseguir encontrar um artigo no singular antes de um substantivo
no plural. Esse “a” de “a expensas” não passa de preposição, portanto nem
pensar em acento indicador de crase.
O
fato é que, pela velha história da contaminação lingüística, ocorre uma grande
confusão, e as pessoas acabam trocando tudo. Aparecem as expressões “às custas
de”, “às expensas de” etc. Cuidado! É bom repetir: “à custa de”, “a expensas de”.
Expressões
como essas valem um bom e interminável papo. E muita confusão. Um dia, voltamos
ao assunto.
Até a
próxima. Um forte abraço.
Pasquale Cipro Neto
MARÇO .1998
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