sábado, 30 de agosto de 2014
Discurso, texto e enunciação
Imaginemos duas
pessoas conversando: Luís e Helena. Luís diz a Helena o seguinte:
— Helena,
você sabe o endereço do Maurício? Eu preciso mandar uma carta a ele ainda hoje.
Vamos chamar
Luís de enunciador e Helena de enunciatário. Aquilo que o enunciador Luís
disse ao enunciatário basear-se apenas nele, no seu conteúdo semântico específico.
Se ela fizesse isso, poderia dar uma resposta Helena e que está transcrito
acima é um texto. Para entender,
entretanto, esse texto, não basta a Helena simples, um sei apenas, o que deixaria Luís furioso, uma vez que ele não está
fazendo um teste de conhecimentos com ela, mas sim pedindo uma informação para
enviar correspondência. Essa intenção do enunciador Luís é chamada de enunciação ou ato ilocucional. A enunciação
poderia estar presente no texto, caso Luís se expressasse dizendo:
—
Helena, eu quero que você me forneça, caso saiba, o endereço do Maurício, pois
preciso mandar uma carta a ele ainda hoje.
Muitas vezes,
entretanto, como no primeiro exemplo, a enunciação não está presente no texto. De
que maneira, então, Helena é capaz de captá-la, apesar disso? Simplesmente pelo
fato de ela ter o conhecimento prévio de que perguntas podem ser utilizadas
como maneira indireta de fazer pedidos. De fato, quando alguém se aproxima de
nós e nos pergunta se temos hora ou se temos um cigarro, não está apenas
querendo saber se estamos com relógio ou se temos de fato um cigarro, mas obter
de nós a informação sobre que horas são ou ganhar um cigarro.
Como vemos,
ouvir ou ler um texto é muito mais do que entender o que está dito ou escrito. É
conseguir também, a partir do nosso conhecimento de mundo, que chamarei aqui de
repertório, perceber as intenções [enunciação]
que o enunciador teve quando elaborou ou codificou
seu texto. Dizemos que, quando o ouvinte ou leitor foi capaz de realizar esse
percurso: ouvir ou ler o texto, associando-o à intenção/enunciação do emissor,
ele conseguiu decodificá-lo.
Dar ordens,
fazer promessas, pedir desculpas são outros exemplos de enunciação [intenção do
emissor]. Mas vamos a outros exemplos.
Imaginemos que
alguém se dirige a uma faxineira, apontando um cinzeiro cheio de pontas de
cigarro, e diz: O cinzeiro está cheio.
É óbvio que o objetivo desse alguém [sua enunciação] foi dar ordem à faxineira
de esvaziar e limpar o cinzeiro.
Outra situação,
bastante comum, é a de duas pessoas desconhecidas se encontrarem num ponto de
ônibus ou dentro do elevador e iniciarem uma conversa sobre o tempo, em moldes semelhantes
ao que se segue:
— Parece que esfriou um pouco, né?
— É. Esfriou sim. Mas na semana passada estava mais
frio. Hoje, pelo menos, está fazendo sol.
É claro que as
duas pessoas em questão não estão absolutamente interessadas no que estão
dizendo. Estão simplesmente praticando um ritual de contato, que é, por assim
dizer, a enunciação desse diálogo.
Uma outra experiência
bastante comum, de uma enunciação ou ato ilocucional praticado indiretamente, é
a do rapaz que, diante de uma moça bonita, lhe pergunta: Você tem alguma coisa para fazer hoje à noite? É claro que sua
intenção não é ser informado sobre o que ela pretende ou não fazer depois do
jantar, mas tão simplesmente realizar um convite, provavelmente de natureza
afetiva.
Como podemos
ver, a criação de um texto envolve uma intenção, e seu entendimento envolve não
apenas o conteúdo semântico — aquilo que o texto diz — mas a interpretação da
intenção de quem o produziu. Muitas vezes, perdidos na fala de nosso emissor,
perguntamos: Mas o que é que você quer
dizer com isso? Trata-se de uma pergunta sobre a enunciação.
Disso tudo,
podemos dizer que o texto é um produto da enunciação, estático, definitivo e,
muitas vezes, com algumas marcas da enunciação que nos ajudarão na tarefa de
decodificá-lo.
O discurso,
entretanto, é dinâmico: principia quando o emissor realiza o processo de
textualização e só termina quando o destinatário cumpre sua tarefa de interpretação.
Nesse sentido, podemos dizer, também, que o discurso é histórico. Ele é feito,
em princípio, para uma ocasião e público determinados.
Na conversação
e nos noticiários de televisão, temos exemplos de textualização e interpretação
simultâneas. Muitas vezes, todavia, a textualização acontece em um tempo bem
anterior ao da interpretação, como ocorre com o texto escrito, muito embora o
intervalo entre ambos os processos tenha uma duração bastante variável.
Na elaboração
do texto jornalístico, por exemplo, o intervalo entre textualização e
interpretação é breve, mas já não acontece o mesmo com um romance ou um artigo
científico, que podem ficar muito tempo à espera da leitura que os transforme em
discurso.
Uma vez, sob
um maravilhoso céu noturno, em companhia de um colega, físico, aprendi que,
olhando para as estrelas, estamos avistando o passado, uma vez que aquilo que
vemos é apenas a luz emitida por elas há milhões e milhões de anos. Elas poderiam
nem mesmo existir mais, porém, ainda assim, estaríamos vendo-as pela luz
emitida em tempos remotos.
Essa comparação
serve ao discurso. Podemos dizer que o discurso da Odisseia de Homero teve início
quando Homero produziu o texto da Odisseia, mas só se completou em cada um dos
momentos em que seus leitores cumpriram sua parte de ler a Odisseia. Assim, por
exemplo, se eu nunca a tivesse lido e fosse fazê-lo agora, estaria entrando em
contato com um discurso materializado em texto que se teria iniciado muitos
séculos antes de Cristo, mas que só se completou agora, com a minha leitura
atual. Mas pode acontecer também que eu já tivesse lido a Odisseia e me
dispusesse a lê-la de novo. Nesse momento, seria construído um novo discurso,
diferente daquele construído quando da minha primeira leitura, pelo simples
motivo de que eu mudei minha visão de mundo, meus conhecimentos; meu
repertório, enfim, era um quando tomei contato com o texto pela primeira vez. Agora,
é outro. Nesse sentido é que podemos dizer que um texto, uma vez pronto, é algo
estático, e que o discurso, ao contrário, é sempre dinâmico e pode ser repetido
infinitamente, sempre de formas diferentes, dependendo dos repertórios de seus
leitores.
Fonte:
ABREU, Antônio
Suárez. Curso de redação. 12 ed. São
Paulo: Ática, 2004.
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domingo, 10 de agosto de 2014
O modelo comunicativo de Roman Jakobson
Um dos modelos mais utilizados por professores de português
para explicar a comunicação humana nasceu — quem diria? — na matemática. Tudo começou
em 1948, quando o matemático e engenheiro elétrico Claude Shannon publicou um
artigo chamado “Uma teoria matemática da comunicação”. Shannon era pesquisador
dos Laboratórios Bell, ligados à gigante norte-americana das computações
AT&T, e buscava maneiras de tornar mais eficientes os telégrafos e
aparelhos de telefonia da época. Sua grande preocupação era evitar o ruído, isto é, as interferências que
prejudicavam a perfeita transmissão da mensagem entre um aparelho e outro.
No ano seguinte, a teoria de Shannon foi publicada em um livro com prefácio
de Warren Weaver, outro matemático e engenheiro. Weaver — que também era um
ótimo relações-públicas — enviou um exemplar da obra a Roman Jakobson, renomado
linguista de origem russa que lecionava na Universidade de Harvard. O linguista
ficou fascinado com a nova teoria e considerou que ela também se aplicava à
comunicação humana. Nascia, assim, a versão mais clássica do modelo comunicativo, divulgada por Jakobson nos anos 1960.e comunicação humana estão
presentes seis elementos:
·
a mensagem
— o conjunto de informações que se quer transmitir;
·
o emissor
ou remetente — aquele de quem parte
a mensagem;
·
o receptor
ou destinatário —aquele a quem se
destina a mensagem;
· o código
— um sistema de signos que emissor e receptor precisam compartilhar, total ou
parcialmente, para que haja a comunicação;
·
o canal
ou contato — o meio físico pelo qual
emissor e receptor se comunicam;
·
o referente ou contexto — o assunto da mensagem, aquilo a que ela se refere.
Assim, por exemplo, se você enviar um torpedo a um amigo convidando-o
para uma festa, a mensagem será o conteúdo do torpedo, ou seja, o conjunto de
palavras que o compõem. O emissor será você, e o receptor, seu amigo. O código será
a língua portuguesa, o canal será o celular e o referente será a festa, pois é
a ela que a mensagem se refere.
Se você preferir fazer o convite pessoalmente, quase todos os elementos
permanecerão inalterados, quase todos os elementos permanecerão inalterados — exceto
o canal, que passará a ser o ar, pelo qual sua voz se propagará. Vale lembrar,
ainda, que, em um evento comunicativo dinâmico como a conversa face a face,
emissor e receptor trocam o tempo todo de posição, de acordo com aquele que
está falando ou ouvindo em cada momento.
Vamos a outro exemplo, imagine que você esteja dirigindo por uma estrada
e depare com uma placa [com o desenho de
uma ponte em que as metades inclinam liberando o rio para a navegação de
embarcações]. Neste caso, o emissor
é o órgão responsável pelo controle do trânsito, os receptores são você e os demais motoristas. O canal é a placa em si, o código
é o conjunto dos sinais de trânsito do país e a mensagem — expressa segundo os símbolos desse código — é “ponte
móvel adiante”. Por fim, o referente
é a ponte em questão; não qualquer uma, mas especificamente aquela que se
encontra adiante, na estrada. Observe que se o receptor não conhecer o código (as
placas de trânsito do país), não saberá interpretar a mensagem. Daí termos
afirmado que emissor e receptor precisam compartilhar o código, ainda que
parcialmente.
Adaptado:
GUIMARÃES, Thelma de
Carvalho. Comunicação e linguagem.
São Paulo: Pearson, 2012.
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