sábado, 15 de outubro de 2016
Por um caminho sustentável para inovar na Educação pública brasileira
A
ideia de Educação universal, de qualidade, pública e gratuita talvez seja o
mais ousado, difícil e ambicioso projeto do século 21
Se as nossas escolas públicas ganhassem um real
para cada ideia revolucionária que já foi tentada na Educação brasileira,
teríamos o sistema educacional mais rico do mundo. Parece que quanto mais
problemática nossa Educação aparenta ser, mais fértil se torna o mercado de
ideias milagrosas, soluções rápidas e receitas indolores para tirá-la do
buraco. Esse é, na verdade, um grande desafio das sociedades democráticas em geral:
convencer a população de que não há milagre ou mágica para alguns dos grandes
problemas nacionais, principalmente aqueles com mecanismos e dinâmicas
invisíveis. Parece fácil compreender que, se queremos saúde pública de
qualidade, precisamos de mais hospitais e médicos; se queremos transporte
público de qualidade, precisamos de mais metrô. É necessário investir, e os
resultados demoram: precisamos de uma década para formar um bom médico, o metrô
demora anos para ficar pronto.
Em Educação, as coisas são mais confusas e sutis.
Os sistemas educacionais públicos são uma combinação de obras físicas, pessoas,
sistemas organizacionais, currículos e princípios pedagógicos. É muito mais
difícil entender como esse sistema complexo funciona e como podemos melhorá-lo.
É tentador acreditar em curandeiros e em suas soluções (ou tecnologias)
milagrosas. A boa notícia é que as ciências que estudam os sistemas
educacionais evoluíram enormemente nos últimos 40 anos: a pedagogia, as
ciências cognitivas, a economia, as ciências organizacionais, a psicologia e
uma infinidade de outros campos do conhecimento relacionados, como a
neurociência, a mineração de dados e a estatística. Além disso, os filósofos e
sociólogos da Educação também fizeram avançar nosso entendimento sobre o papel
da Educação nas sociedades modernas e sobre os sistemas humanos e
micropolíticos que sustentam e habitam as escolas. Essa combinação de avanços
tem enorme potencial para trazer melhoria sustentável para a Educação
brasileira, mas ela exige uma alteração radical na nossa abordagem. Essa
mudança, acredito, tem cinco pontos principais: 9 (a) reconhecer o tamanho do
problema e investir em pesquisa; (b) abordar a implementação de novos sistemas
educacionais como um problema científico multidisciplinar; (c) abordar a nossa
visão da Educação como um problema filosófico e de projeto de sociedade; (d)
inovar com base no que já deu certo e em teorias educacionais sólidas; e,
finalmente, (e) medir e avaliar com rigor, mas criar avaliações inovadoras que
meçam o que efetivamente interessa.
Foi só no final do século 19 que a Educação começou
a tomar forma como um direito efetivamente universal, e só em meados do século
20 que a ideia de uma Educação de igual qualidade para todas as classes sociais
passou a ser majoritariamente aceita. No Brasil, só alcançamos a
universalização na última década – mais de cem anos depois de virarmos uma
república. Portanto, a ideia de Educação universal, de qualidade, pública e
gratuita talvez seja o mais ousado, difícil e ambicioso projeto do século 21,
principalmente para um país em desenvolvimento. Um desafio assim não se
conquista apenas com “mais dinheiro para a Educação”, como ouvimos frequentemente
em campanhas eleitorais. Mesmo que tivéssemos recursos infinitos, não
saberíamos quais as soluções técnicas para todos os problemas, porque essas
soluções requerem vários ciclos de desenho, teste, redesenho e implementação.
Também não basta organizar expedições pelo mundo para “trazer o que
(supostamente) está dando certo” para o Brasil, porque soluções que funcionam
em um país de 5 milhões de habitantes (como a Finlândia) ou com um PIB per
capita de 55 mil dólares (como Cingapura, cinco vezes maior que o brasileiro)
não vão funcionar automaticamente no Brasil sem amplas adaptações. Como em
qualquer grande problema científico, precisamos de pesquisa e de uma massa
crítica de pesquisadores trabalhando em tempo integral nesse tema. Como em
qualquer grande problema de política pública, precisamos de equipes estáveis
nas secretarias de Educação e de continuidade nos programas governamentais – e
nos acostumar com a ideia de que é uma viagem de duas ou três décadas.
Desenhar, implementar e medir um sistema da
dimensão do nosso sistema educacional requer um gigantesco esforço científico.
Mas “científico” não quer dizer simplesmente numérico ou estatístico, ou que
devamos desprezar as ciências humanas no estudo da Educação. Grandes
descobertas da Educação vieram de estudos etnográficos ou qualitativos, porque
esse tipo de pesquisa é muito útil para identificar os [Precisamos] nos
acostumar com a ideia de que é uma viagem de duas ou três décadas mecanismos de
aprendizagem mais eficientes (em vez de simplesmente achar correlações). Sabemos
que não há econometria que dê conta das complexidades da Educação, mas também
não podemos prescindir dos instrumentos metodológicos dos economistas e
estatísticos. Precisamos de profissionais de várias especialidades para gerar a
ciência que vai melhorar a Educação brasileira: pedagogos, educadores,
economistas, sociólogos, psicólogos, neurocientistas, cientistas da computação
etc. O importante não é brigar pelo tipo de pesquisa que conta como científica
(qualitativa ou quantitativa), mas o seu rigor: o que quer que seja feito deve
obedecer a padrões científicos de alto nível em cada disciplina. Além disso,
precisamos criar fóruns de debate e colaboração multidisciplinar, de modo que
pesquisadores possam avançar coletivamente nas fronteiras do conhecimento no
tema.
O fato de abordarmos a implementação da Educação
como um problema científico não significa que devamos eliminar a discussão
filosófica sobre o que queremos da Educação. Esse debate deve ser baseado no
que queremos ser como sociedade, que futuro imaginamos para nossas crianças e
que tipo de DNA intelectual queremos construir para o Brasil. Se optarmos por
uma Educação majoritariamente voltada para o trabalho e o mercado, talvez
decidamos eliminar disciplinas como as artes, os esportes e as humanidades. Se,
por outro lado, optarmos por uma Educação mais humanista e global, daremos
ênfase no Ensino Fundamental a uma formação mais generalista. Se desejamos ter
uma sociedade mais inventiva, talvez devamos ter mais cursos em que os alunos
exercitem a sua criatividade. Ou talvez decidamos por uma combinação de várias
abordagens. De qualquer forma, essas decisões não são problemas científicos,
mas decisões políticas e filosóficas que devemos tomar antes de entrarmos nas
questões de implementação.
Não adianta ter uma grande visão filosófica para a
Educação e ótimos pesquisadores se não soubermos inovar. Inovação não é
necessariamente tecnológica e muitas vezes pode ser até fora da sala de aula –
por exemplo, na gestão das escolas ou no seu projeto arquitetônico. Inovação é
fundamental porque a mais genial das análises estatísticas não tem como criar
novos currículos e abordagens pedagógicas, assim como um economista jamais vai
descobrir a cura de uma doença ou colocar um foguete em órbita. Para medir os
resultados da inovação, podemos contar com outros profissionais, mas, para
inovar, precisamos de quem entenda de Educação. Entretanto, inovação sem teoria
e sem conhecimento histórico é extremamente ineficiente. Saber o que já foi
feito e testado é a forma inteligente de produzir inovação que não reinventa a
roda. Assim como temos 200 milhões de técnicos de futebol no Brasil, muita
gente acha que entende de Educação só porque passou pelo sistema educacional,
sem jamais ter tido uma experiência profissional na área ou estudado pedagogia,
psicologia, ciência cognitiva ou desenho instrucional. O resultado é que ficamos
continuamente “reinventando” o que já foi feito, duplicando esforços sem
acumulação de conhecimento, submetendo nossas escolas e professores a um
martírio de velhos novos projetos a cada quatro anos. Ao mesmo tempo, como
insistimos em desvalorizar o(a) professor(a) e o(a) pesquisador(a) de pedagogia
de todas as formas possíveis, preferimos não ouvi-lo(a) quando se trata de
pensar em reformas educacionais. O resultado é que a mortalidade de inovações
educacionais – tanto no setor privado quanto no público – é altíssima. Inovamos
sem levar em consideração que existe uma enorme quantidade de conhecimento
sobre como o cérebro funciona e se desenvolve, como alunos aprendem de forma
mais eficiente e com mais motivação, como organizar salas de aula de forma mais
eficaz e como desenhar currículos otimizados. Sim, esse conhecimento existe,
mas como dá um trabalho imenso ir atrás de tudo isso, muitas vezes se prefere
“inovar” como se o saber sobre a cognição humana tivesse parado no século 19.
Por fim, precisamos atacar o fetiche da medição. Em
um país de altos índices de analfabetismo matemático como o Brasil, quem tem um
olho é rei: números e estatísticas adquiriram uma credibilidade quase
religiosa, que esconde que eles são tão confiáveis quanto os pesquisadores que
desenharam os métodos de coleta e análise de dados. Há muitas formas de os
números “mentirem”: se a coleta de dados foi mal desenhada, se o pesquisador
não a controlou pelas variáveis certas, se elementos externos influenciaram os
resultados, se as técnicas estatísticas não foram rigorosas ou se a margem de
erro é muito grande. Para dizer que a escola A é melhor que a escola B não
basta calcular a média do Enem – afirmar algo assim com segurança exige uma tese
de mestrado. Mas, de novo, usar todo esse rigor dá trabalho e frustra as nossas
expectativas de colocar tudo em rankings tão fáceis de entender como a
classificação do campeonato brasileiro. Mas rankings mal calculados e
apressados, dados sem rigor e estatísticas sem significado são muitas Não
adianta ter uma grande visão filosófica para a Educação e ótimos pesquisadores
se não soubermos inovar vezes piores do que simplesmente admitir que ainda não
sabemos medir a variável de interesse.
Mas medir de forma inteligente vai além de medir
com rigor. Precisamos medir o que interessa. Não podemos medir tudo que
desejamos na formação de um jovem só com testes de múltipla escolha. Nem tudo
que interessa em avaliação educacional deve ser medido em testes nacionais com
milhões de estudantes. Parte da avaliação do aprendizado tem de ser feita na
escola, pelos professores, em pequenos grupos. Por exemplo, como avaliar se um
aluno sabe pensar matematicamente sem observar todo o seu raciocínio, etapa por
etapa? Como medir se um aluno sabe fazer uma experiência científica sem estar
em um laboratório? Como avaliar se o aluno consegue criar uma invenção em um
laboratório “maker” só com papel e caneta? Medir esse tipo de habilidade é uma
tarefa complexa, cara e difícil, mas é um desafio fundamental para criar
incentivos reais para que as nossas escolas sejam mais inovadoras. Se as
escolas continuarem a ter como única régua a nota no Enem e de vestibulares de
“papel e caneta”, a inovação vai continuar a ser um luxo restrito a escolas de
elite.
As escolas ensinam aquilo que sabem medir e medem
aquilo que a sociedade valoriza. Enquanto estivermos obcecados com rankings
nacionais em provas de múltipla escolha, continuaremos a dar o incentivo errado
para o sistema educacional, e as escolas continuarão a focar seu tempo e
energia em treinamento para testes. Se, ao contrário, começarmos a criar e
valorizar outros tipos de medidas e comparações, daremos uma chance às escolas
inovadoras de mostrar ao mundo o que estão fazendo e com que qualidade. A
equipe do PISA (Programme for
Internacional Student Assessment, Programa Internacional de Avaliação de
Estudantes, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a
OCDE), por exemplo, está criando e aplicando em escala piloto avaliações de
aprendizado colaborativo, pensamento crítico, criatividade e inovação. Medir o
que interessa – e não o que é barato mensurar – é um dos passos mais
importantes para a inovação sustentável, porque a medição também é um mecanismo
de democratização.
O Brasil sabe inovar em diversas áreas: na música e
em outras artes, na aviação, na agricultura, nos esportes, na exploração de
petróleo. Sabemos inovar na Educação, mas precisamos aprender como sustentá-la
e como distribuí-la democraticamente. Temos hoje um país onde poucos alunos
vivem na escola do século 21, com laboratórios de ciência, oficinas de artes,
tecnologia, robótica e pedagogias avançadas, e uma imensa maioria frequenta a
escola do século 19. Evidentemente, esse abismo obedece às linhas divisórias de
classe social, o que torna a situação ainda mais trágica. Nosso foco, portanto,
precisa mudar. Já percorremos o mundo atrás de inovação e já acumulamos uma
coleção considerável de novos modelos e ideias. Talvez agora seja o momento de
nos debruçarmos na incômoda e trabalhosa tarefa de pensar em como democratizar
a inovação e dar a toda criança brasileira a chance de aprender usando o que de
melhor as ciências do aprendizado nos trouxeram nos últimos 50 anos,
independentemente de gênero, geografia e classe social.
Destino: educação: escolas inovadoras /
[organização] Fundação Roberto
Marinho, Canal Futura; Anna Penido...[et al.];
prefácio Paulo Blikstein;
Introdução Débora Garcia. — São Paulo:
Fundação Santillana, 2016.
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