A Reforma pelo jornal
Texto-fonte:
Obra
Completa, Machado de Assis,
Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994.
Publicado originalmente em O Espelho , Rio
de Janeiro, 23/10/1859.
Houve uma coisa que fez tremer
as aristocracias, mais do que os movimentos populares; foi o
jornal. Devia ser curioso vê-las quando um século despertou ao clarão
deste fiat humano; era a cúpula de seu edifício que se desmoronava.
Com o jornal eram incompatíveis esses parasitas da humanidade, essas fofas individualidades de
pergaminho alçado e leitos de brasões. O
jornal que tende à unidade humana, ao abraço comum, não era um inimigo vulgar,
era uma barreira... de papel, não, mas de inteligências, de
aspirações.
É fácil prever um resultado favorável ao pensamento democrático. A imprensa,
que encarnava a ideia no livro, expendi eu em outra parte,
sentia-se ainda assim presa por um obstáculo qualquer; sentia-se cerrada
naquela esfera larga mas ainda não infinita; abriu pois uma represa
que a impedia, e lançou-se uma noite aquele oceano ao novo leito aberto: o
pergaminho será a Atlântida submergida.
Por que
não?
Todas as
coisas estão em gérmen na palavra, diz um poeta oriental. Não é assim? O verbo
é a origem de todas as reformas.
Os
hebreus, narrando a lenda do Gênesis, dão à criação da luz a precedência
da palavra de Deus. É palpitante o símbolo. O fiat repetiu-se em todos caos, e, coisa admirável! sempre
nasceu dele alguma luz.
A
história é a crônica da palavra. Moisés, no deserto; Demóstenes, nas guerras helênicas; Cristo, nas sinagogas da
Galileia; Huss, no púlpito cristão; Mirabeau, na tribuna republicana;
todas essas bocas eloquentes, todas essas
cabeças salientes do passado, não são senão o fiat multiplicado levantado em todas as confusões da
humanidade. A história não é um simples quadro de acontecimentos; é mais, é o verbo
feito livro.
Ora pois, a palavra, esse dom divino que fez do homem simples matéria
organizada, um ente superior na criação, a palavra foi sempre uma
reforma. Falada na tribuna é prodigiosa, é criadora, mas é o monólogo; escrita no livro, é ainda criadora, é ainda prodigiosa, mas é ainda o monólogo; esculpida no jornal, é prodigiosa e criadora,
mas não é o monólogo, é a discussão.
E o que é a discussão?
A sentença de morte de todo o status quo, de todos os falsos
princípios dominantes. Desde que uma coisa é trazida à discussão, não tem
legitimidade evidente, e nesse caso o choque da argumentação é uma
probabilidade de queda.
Ora, a discussão, que é a feição mais especial, o cunho mais vivo do jornal, é o que não convém
exatamente à organização desigual e sinuosa
da sociedade.
Examinemos.
A primeira propriedade do jornal é a reprodução amiudada, é o derramamento fácil em todos os
membros do corpo social. Assim, o operário
que se retira ao lar, fatigado pelo labor quotidiano, vai lá encontrar ao lado do pão do corpo, aquele pão
do espírito, hóstia social da
comunhão pública. A propaganda assim é fácil; a discussão do jornal reproduz-se também naquele espírito
rude, com a diferença que vai lá achar o terreno preparado. A alma torturada da
individualidade ínfima recebe, aceita,
absorve sem labor, sem obstáculo
aquelas impressões, aquela argumentação de princípios, aquela arguição de fatos. Depois uma reflexão, depois um
braço que se ergue, um palácio que se
invade, um sistema que cai, um princípio que se levanta, uma reforma que se coroa.
Malévola
faculdade — a palavra!
Será ou não o escolho das aristocracias modernas, este novo molde do pensamento e do verbo?
Eu o creio de coração. Graças a Deus, se há alguma coisa a esperar é a das
inteligências proletárias, das classes ínfimas; das superiores, não.
As aristocracias dissolvem-se, diz um eloquente irmão d'armas. É a verdade. A
ação democrática parece reagir sobre as castas que se levantam
no primeiro plano social. Os próprios brasões já se humanizam
mais, e alguns jogam na praça sem notarem que começam a confundir-se com as casacas
do agiota.
Causa
riso.
Tremem, pois, tremem com este invento que parece abranger os séculos — e
rasgar desde já um horizonte largo às aspirações cívicas, às inteligências populares.
E se quisessem suprimi-lo? Não seria mau para eles; o fechamento da imprensa,
e a supressão da sua liberdade, é a base atual do primeiro trono da Europa.
Mas como! cortar as asas de águia que se lança no infinito, seria uma tarefa
absurda, e, desculpem a expressão, um cometimento parvo. Os pergaminhos já não são
asas de Ícaro. Mudaram as cenas; o talento
tem asas próprias para voar; senso bastante para aquilatar as culpas
aristocráticas e as probidades cívicas.
Procedem
estas ideias entre nós? Parece que sim. É verdade que o jornal aqui não está à altura da sua missão; pesa-lhe ainda o último elo. Às vezes leva a exigência até à letra
maiúscula de um título de fidalgo.
Cortesania
fina, em abono da verdade!
Mas, não
importa! eu não creio no destino individual, mas aceito o destino coletivo da
humanidade. Há um polo atraente e fases a atravessar.
— Cumpre vencer o caminho a todo o custo; no fim há sempre uma tenda
para descansar, e uma relva para dormir.