segunda-feira, 12 de agosto de 2019
A hora e vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa
A
hora e vez de Augusto Matraga
João
Guimarães Rosa
Matraga
não é Matraga, não é nada. Matraga é Estêves. Augusto Estêves, filho do Coronel
Afonsão Estêves, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto — o homem —
nessa noitinha de novena, num leilão de atrás da igreja, no arraial da Virgem
Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici.
Procissão
entrou, reza acabou. E o leilão andou depressa e se extinguiu, sem graça,
porque a gente direita foi saindo embora, quase toda de uma vez.
Mas o
leiloeiro ficara na barraca, comendo amêndoas de cartucho e pigarreando de
rouco, bloqueado por uma multidão encachaçada de fim de festa.
E, na
primeira fila, apertadas contra o balcãozinho, bem iluminadas pelas candeias de
meia-laranja, as duas mulheres-à-toa estavam achando em tudo um espírito
enorme, porque eram só duas e pois muito disputadas, todo-o-mundo com elas
querendo ficar.
Beleza
não tinham: Angélica era preta e mais ou menos capenga, e só a outra servia.
Mas, perto, encostado nela outra, um capiau de cara romântica subia todo no
sem-jeito; eles estavam se gostando, e, por isso, aquele povo encapetado não
tinha — pelo menos para o pobre namorado — nenhuma razão de existir. E a cada
momento as coisas para ele pioravam, com o pessoal aos gritos:
— Quem
vai arrematar a Sariema? Anda, Tião! Bota a Sariema no leilão!...
— Bota
no leilão! Bota no leilão...
A das
duas raparigas que era branca e que tinha pescoço fino e pernas finas, e passou
a chamar-se, imediatamente, Sane ma — pareceu se assustar, O capiau apaixonado
deixou fuchicar, de cansaço, o meio-riso que trazia pendurado. E o leiloeiro
pedia que houvesse juízo; mas ninguém queria atender.
— Dou
cinco mil-réis!
Sariema!
Sariema!
E, aí,
de repente, houve um deslocamento de gentes, e Nhô Augusto, alteado, peito
largo, vestido de luto, pisando pé dos outros e com os braços em tenso,
angulando os cotovelos, varou a frente da massa, se encarou com a Sariema, e
pôs-lhe o dedo no queixo. Depois, com voz de meio-dia, berrou para o leiloeiro Tião:
— Cinquenta mil-réis!...
Ficou de
mãos na cintura, sem dar rosto ao povo, mas pausando para os aplausos.
Nhô
Augusto! Nhô Augusto!
E
insistiu fala mais forte:
Cinquenta
mil-réis, já disse!
Dou-lhe
uma! dou-lhe duas! Dou-lhe duas — dou-lhe três!
Mas,
nisso, puxaram para trás a outra — a Angélica preta se rindo, senvergonha e
dengosa — que se soverteu na montoeira, de braço em braço, de rolo em rolo,
pegada, manuseada, beliscada e cacarejante:
— Virgem
Maria Puríssima! Úi, pessoal!
E só
então o Tião leiloeiro achou coragem para se impor:
—
Respeito, gente, que o leilão é de santo!...
—
Bau-bau!
— Me
desprezo! Me desprezo desse herege!... Vão coçar suas costas em parede!...
Coisa de igreja tem castigo, não é brinquedo... Deix’passar! ... Dá enxame,
gente! Dá enxame!...
Alguns
quiseram continuar vaia, mas o próprio Nhô Augusto abafou a arrelia: — Sino e
santo não é pagode, povo! Vou no certo... Abre, abre, deixa o Tião passar!
Então,
surpresos, deram caminho, e o capiau amoroso quis ir também: — Vamos embora,
Tomázia, aproveitando a confusão... E sua voz baixava, humilde, porque para ele
ela não era a Sariema. Pôs três dedos no seu braço, e bem que ela o quis
acompanhar. Mas Nhô Augusto separou-os, com uma pranchada de mão: — Não vai,
não!
E,
atrás, deram apoio os quatro guarda-costas: — Tem areia! Tem areia! Não vai,
não!
É do Nhô
Augusto... Nhô Augusto leva a rapariga! — gritava o povo, por ser barato. E uma
voz bem entoada cantou de lá, por cantar:
Mariquinha
é como a chuva:
boa ,
p’ra quem quer bem!
Ela vem
sempre de graça,
só não
sei quando ela vem...
Aí o
povaréu aclamou, com disciplina e cadência: — Nhô Augusto leva a Sariema! Nhô
Augusto leva a Sariema!
O
capiauzinho ficou mais amarelo. A Sariema começou a querer chorar. Mas Nhô
Augusto, rompente, alargou no tal três pescoções:
— Toma!
Toma! E toma!... Está querendo?...
Ferveram
faces.
— Que
foi? Que foi?...
—
Deix’eu ver!...
— Não me
esbarra, filho-da-mãe!
E a
agitação partiu povos, porque a maioria tinha perdido a cena, apreciando, como
estavam, uma falta-de-lugar, que se dera entre um velho — “Cai n’água,
barbado!” — e o sacristão, no quadrante noroeste da massa. E também no setor
sul estalara, pouco antes, um mal-entendido, de um sujeito com a correia
desafivelada lept!... lept!... — com um outro pedindo espaço, para poder fazer
sarilho com o pau.
— Que
foi, hein?... Que foi?
Foi o
capiauzinho apanhando, estapeado pelos quatro cacundeiros de Nhô Augusto, e
empurrado para o denso do povo, que também queria estapear.
— Viva
Nhô Augusto!
— Te
apessoa para cá, do meu lado! — e Nhô Augusto deu o braço à rapariga, que parou
de lacrimejar.
— Vamos
andando.
Passaram
entre alas e aclamações dos outros, que, aí, como não havia mais mulheres, nem
brigas, pegaram a debandar ou a cantar:
Ei,
compadre, chegadinho, chegou...
Ei,
compadre, chega mais um bocadinho!...”
Nhô
Augusto apertava o braço da Sariema, como quem não tivesse tido prazo para
utilizar no capiau todos os seus ímpetos:
— E é,
hein?... A senhora dona queria ficar com aquele, hein?!
— Foi,
mas agora eu gosto é de você.., O outro eu mal-e mal conheci...
Caminharam
para casa. Mas para a casa do Beco do Sem Ceroula, onde só há três prédios —
cada um deles com gramofone tocando, de cornetão à janela e onde gente séria
entra mas não passa.
Nisso,
porém, transpunham o adro, e Nhô Augusto parou, tirando o chapéu e fazendo o
em-nome-do-padre, para saudar a porta da igreja. Mas o lugar estava bem
alumiado, com lanterninhas e muita luz de azeite, pendentes dos arcos de bambu.
E Nhô Augusto olhou a mulher.
— Que
é?!... Você tem perna de manuel-fonseca, uma fina e outra seca! E está que é só
osso, peixe cozido sem tempero... Capim p’ra mim, com uma sombração dessas!...
Vá-se embora, frango-d’água! Some daqui!
E,
empurrando a rapariga, que abriu a chorar o choro mais sentido da sua vida, Nhô
Augusto desceu a ladeira sozinho — uma ladeira que a gente tinha de descer
quase correndo, por que era só cristal e pedra solta.
Lá em
baixo, esbarrou com o camarada, que trazia recado de Dona Dionóra: que Nhô
Augusto voltasse, ou ao menos desse um pulo até lá— à casa dele, de verdade, na
Rua de Cima, — porque ainda havia muito arranjo a ultimar para a viagem, e ela
— a mulher, a esposa — tinha uma ou duas coisas por perguntar...
Mas Nhô
Augusto nem deixou o mensageiro acabar de acabar: — Desvira, Quim, e dá o
recado pelo avesso: eu lá não vou! ... Você apronta os animais, para voltar
amanhã com Siá Dionóra mais a menina, para o Morro Azul. Mas, em antes, você
sobe por aqui, e vai avisar aos meus homens que eu hoje não preciso deles, não.
E o Quim
Recadeiro correu, com o recado, enquanto Nhô Augusto ia indo em busca de
qualquer luz em porta aberta, aonde houvesse assombros de homens, para entrar
no meio ou desapartar.
Era fim
de outubro, em ano resseco. Um cachorro soletrava, longe, um mesmo nome, sem
sentido. E ia, no alto do mato, a lentidão da lua.
Dona
Dionóra, que tinha belos cabelos e olhos sérios, escutou aquela resposta, e não
deu ar de seus pensamentos ao pobre camarada Quim. Mas muitos que eles eram, a
rodar por lados contrários e a atormentar-lhe a cabeça, e ela estava cansada,
pelo que, dali a pouco, teve vontade de chorar. E até a Mimita, que tinha só
dez anos e já estava na cama, sorriu para dizer:
— Eu
gosto, minha mãe, de voltar para o Morro Azul...
E então
Dona Dionóra enxugou os olhos e também sorriu, sem palavra para dizer. De
voltar para o retiro, sem a companhia do marido, só tinha por que se alegrar.
Sentia, pelo desdeixo. Mas até era bom sair do comércio, onde todo o mundo
devia estar falando da desdita sua e do pouco-caso, que não merecia.
E ela
conhecia e temia os repentes de Nhô Augusto. Duro, doido e sem detença, como um
bicho grande do mato. E, em casa, sempre fechado em si. Nem com a menina se
importava.
Dela,
Dionóra, gostava, às vezes; da sua boca, das suas carnes. Só. No mais, sempre
com os capangas, com mulheres perdidas, com o que houvesse de pior. Na fazenda
— no Saco-da-Embira, nas Pindaíbas, ou no retiro do Morro Azul — ele tinha
outros prazeres, outras mulheres, o jogo do truque e as caçadas. E sem efeito
eram sempre as orações e promessas, com que ela o pretendera trazer, pelo menos,
até a meio caminho direito.
Fora
assim desde menino, uma meninice à louca e à larga, de filho único de pai
pancrácio.
E ela,
Dionóra, tivera culpa, por haver contrariado e desafiado a família toda, para
se casar.
Agora,
com a morte do Coronel Afonsão, tudo piorara, ainda mais. Nem pensar. Mais
estúrdio, estouvado e sem regra, estava ficando Nhô Augusto. E com dívidas
enormes, política do lado que perde, falta de crédito, as terras no desmando,
as fazendas escritas por paga, e tudo de fazer ânsia por diante, sem portas,
como parede branca.
Dionóra
amara-o três anos, dois anos dera-os às dúvidas, e o suportara os demais.
Agora, porém, tinha aparecido outro. Não, só de pôr aquilo na ideia, já sentia
medo... Por si e pela filha... Um medo imenso.
Se
fosse, se aceitasse de ir com o outro, Nhô Augusto era capaz de matá-la. Para
isso, sim, ele prestava muito. Matava, mesmo, como dera conta do homem da
foice, pago por vingança de algum ofendido. Mas, quem sabe se não era melhor se
entregar à sina, com a proteção de Deus, se não fosse pecado... Fechar os
olhos.
E o
outro era diferente! Gostava dela, muito... Mais do que ele mesmo dizia, mais
do que ele mesmo sabia, da maneira de que a gente deve gostar. E tinha uma
força grande, de amor calado, e uma paciência quente, cantada, para chamar pelo
seu nome: ... Dionóra...
“Dionóra,
vem comigo, vem comigo e traz a menina, que ninguém não toma vocês de mim!...”
Bom... Como um sonho... Como um sono...
Dormiu.
E,
assim, mal madrugadinha escassa, partiram as duas — Dona Dionóra, no cavalo de
silhão, e a Mimita, mofina e franzi na, carregada à frente da sela do camarada
Quim.
Pernoitaram
no Pau Alto, no sítio de um tio nervoso, que riscava a mesa com as unhas e não
se cansava de resmungar:
— Fosse
eu, fosse eu... Uma filha custa sangue, filha é o que tem de mais valia...
— Sorte
minha, meu tio...
— Sorte
nunca é de um só, é de dois, é de todos... Sorte nasce cada manhã, e já está
velha ao meio-dia...
— Culpa
eu tive, meu tio...
— Quem
não tem, quem não teve? Culpa muita, minha filha... Mãe do Nhô Augusto morreu,
com ele ainda pequeno... Teu sogro era um leso, não era p’ra chefe de
família... Pai era como que Nhô Augusto não tivesse... Um tio era criminoso, de
mais de uma morte, que vivia escondido, lá no Saco-da-Embira... Quem criou Nhô
Augusto foi a avó... Queria o menino p’ra padre... Rezar, rezar, o tempo todo,
santimônia e ladainha...
De
manhã, com o sol nascendo, retomaram a andadura. E, quando o sol esteve mais
dono de tudo, e a poeira era mais seca, Mimita começou a gemer, com uma dor de
pontada, e pedia água. E, depois, com um sorriso tristinho, perguntava: — Por
que é que o pai não gosta de nós, mãe?
E o Quim
Recadeiro ficava a bater a cabeça, vez e vez, com muita circunspecção tola, em
universal assentimento.
Mas, na
passagem do brechão do Bugre, lá estava seu Ovídio Moura, que tinha sabido,
decerto, dessa viagem de regresso.
—
Dionóra, você vem comigo... Ou eu saio sozinho por esse mundo, e nunca mais
você há-de me ver!
Mas Dona
Dionóra foi tão pronta, que ele mesmo se espantou.
— Nhô
Augusto é capaz de matar a gente, seu Ovídio... Mas eu vou com o senhor, e
fico, enquanto Deus nos proteger...
Seu
Ovídio pegou a menina do colo do Quim, que nada escutara ou entendera e passou
a cavalgar bem atrás. E, quando chegaram no pilão-d’água do Mendonça, onde tem
uma encruzilhada, e o camarada viu que os outros iam tomando o caminho da
direita, estugou o cavalo e ainda gritou, para corrigir:
— Volta
para trás, minha patroa, que o caminho por aí é outro!
Mas seu
Ovídio se virou, positivo:
— Volta
você, e fala com o seu patrão que Siá Dona Dionóra não quer viver mais com ele,
e que ela de agora por diante vai viver comigo, com o querer dos meus parentes
todos e com a bênção de Deus!
Quim
Recadeiro, no primeiro passo, ainda levou a mão ao chapéu de palha,
cumprimentando:
— Pois
sim, seu Ovídio... Eu dou o recado...
Ficou
parado, limpando suor dos cabelos, sem se resolver. Mas, fim no fim, num
achamento, se retesou nos estribos, e gritou: — Homem sujo!... Tomara que uma
coruja ache graça na tua porta!...
Jogou
fora, e cuspiu em cima. E tocou para trás, em galope doido, dando poeira ao
vento. Ia dizer a Nhô Augusto que a casa estava caindo.
Quando
chega o dia da casa cair — que, com ou sem terremotos, é um dia de chegada
infalível, — o dono pode estar: de dentro, ou de fora. É melhor de fora. E é a
só coisa que um qualquer-um está no poder de fazer. Mesmo estando de dentro,
mais vale todo vestido e perto da porta da rua. Mas, Nhô Augusto, não: estava
deitado na cama — o pior lugar que há para se receber uma surpresa má.
E o
camarada Quim sabia disso, tanto que foi se encostando de medo que ele entrou.
Tinha poeira até na boca. Tossiu.
—
Levanta e veste a roupa, meu patrão Nhô Augusto, que eu tenho uma novidade meia
ruim, p’ra lhe contar.
E tremeu
mais, porque Nhô Augusto se erguia de um pulo e num átimo se vestia. Só depois
de meter na cintura o revólver, foi que interpelou, dente em dente: — Fala
tudo!
Quim
Recadeiro gaguejou suas palavras poucas, e ainda pôde acrescentar: — ....Eu
podia ter arresistido, mas era negócio de honra, com sangue só p’ra o dono, e
pensei que o senhor podia não gostar...
— Fez na
regra, e feito! Chama os meus homens!
Dali a
pouco, porém, tornava o Quim, com nova desolação: os bate-paus não vinham...
Não queriam ficar mais com Nhô Augusto... O Major Consilva tinha ajustado, um e
mais um, os quatro, para seus capangas, pagando bem. Não vinham, mesmo. O mais
merecido, o cabeça, até mandara dizer, faltando ao respeito: — Fala com Nhô
Augusto que sol de cima é dinheiro!... P’ra ele pagar o que está nos devendo...
E é mandar por portador calado, que nós não podemos escutar prosa de outro, que
seu Major disse que não quer.
—
Cachorrada!... Só de pique... Onde é que eles estão?
— Indo
de mudados, p’ra a chácara do Major...
— Major
de borra! Só de pique, porque era inimigo do meu pai!...Vou lá!
— Mal em
mim não veja, meu patrão Nhô Augusto, mas todos no lugar estão falando que o
senhor não possui mais nada, que perdeu suas fazendas e riquezas, e que vai
ficar pobre, no já-já... E estão conversando, o Major mais outros grandes,
querendo pegar o senhor à traição. Estão espalhando... — o senhor dê o perdão
p’r’a minha boca que eu só falo o que é perciso — estão dizendo que o senhor
nunca respeitou filha dos outros nem mulher casada, e mais que é que nem cobra
má, que quem vê tem de matar por obrigação... Estou lhe contando p’ra mo do de
o senhor não querer facilitar. Carece de achar outros companheiros bons, p’ra o
senhor não ir sozinho... Eu, não, porque sou medroso. Eu cá pouco presto...
Mas, se
o senhor mandar, também vou junto.
Mas Nhô
Augusto se mordia, já no meio da sua missa, vermelho e feroz. Montou e galopou,
teso para trás, rei na sela, enquanto o Quim Recadeiro ia lá dentro, caçar um
gole d’água para beber. Assim.
Assim, quase
qualquer um capiau outro, sem ser Augusto Estêves, naqueles dois contratempos
teria percebido a chegada do azar, da unhaca, e passaria umas rodadas sem jogar
fazendo umas férias na vida: viagem, mudança, ou qualquer coisa ensossa, para
esperar o cumprimento do ditado: “Cada um tem seus seis meses...”
Mas Nhô
Augusto era couro ainda por curtir, e para quem não sai, em tempo, de cima da
linha, até apito de trem é mau agouro. Demais, quando um tem que pagar o gasto,
desembesta até ao fim. E, desse jeito, achou que não era hora para ponderados
pensamentos.
Nele,
mal-e-mal, por debaixo da raiva, uma ideia resolveu por si: que antes de ir à
Mombuca, para matar o Ovídio e a Dionóra, precisava de cair com o Major
Consilva e os capangas. Se não, se deixasse rasto por acertar, perdia a força.
E foi.
Cresceu
poeira, de peneira. A estrada ficou reta, cheia de gente com cautela. Chegou à
chácara do Major.
Mas nem
descavalgou, sem tempo. Do tope da escada, o do no da casa foi falando alto,
risonho de ruim:
— Tempo
do bem-bom se acabou, cachorro de Estêves!...
O cavalo
de Nhô Augusto obedeceu para diante; as ferraduras tiniram e deram fogo no
lajedo; e o cavaleiro, em pé nos estribos, trouxe a taca no ar, querendo a
figura do velho.
Mas o
Major piscou, apenas, e encolheu a cabeça, porque mais não era preciso, e os
capangas pulavam de cada beirada, e eram só pernas e braços.
—
Frecha, povo! Desmancha!
Já os
porretes caíam em cima do cavaleiro, que nem pinotes de matrinchãs na rede.
Pauladas
na cabeça, nos ombros, nas coxas. Nhô Augusto desdeu o corpo e caiu. Ainda se
ajoelhou em terra, querendo firmar-se nas mãos, mas isso só lhe serviu para
poder ver as caras horríveis dos seus próprios bate-paus, e, no meio deles, o
capiauzinho mongo que amava a mulher-à toa Sariema.
E Nhô
Augusto fechou os olhos, de gastura, porque ele sabia que capiau de testa
peluda, com o cabelo quase nos olhos, é uma raça de homem capaz de guardar o
passado em casa, em lugar fresco perto do pote, e ir buscar da rua outras
raivas pequenas, tudo para ajuntar à massa-mãe do ódio grande, até chegar o dia
de tirar vingança.
Mas, aí,
pachorrenta e cuspida, ressoou a voz do Major: — Arrastem p’ra longe, para fora
das minhas terras... Marquem a ferro, depois matem.
Nhô
Augusto se alteou e estendeu o braço direito, agarrando o ar com os cinco
dedos: — Cá p’ra perto, carrasco!... Só mesmo assim desse jeito, p’ra sojigar
Nhô Augusto Estêves!
E,
seguro por mãos e pés, torcido aos pulsos dos capangas, urrava e berrava, e
estrebuchava tanto, que a roupa se estraçalhava, e o corpo parecia querer
partir-se em dois, pela metade da barriga. Desprendeu-se, por uma vez. Mas
outros dos homens desceram os porretes. Nhô Augusto ficou estendido, debruços,
com a cara encostada no chão.
-— Traz
água fria, companheiro!
O
capiauzinho da testa peluda cantou, mal-entoado: Sou como a ema,
Que tem
penas e não voa...
Os
outros começaram a ficar de cócoras.
Mas,
quando Nhô Augusto estremeceu e tornou a solevar a cabeça, o Major, lá da
varanda, apertando muito os olhos, para espiar, e se abanando com o chapéu,
tirou ladainha: — Não tem mais nenhum Nhô Augusto Estêves, das Pindaíbas, minha
gente?!...
E os
cacundeiros, em coro:
— Não
tem não! Tem mais não!...
Puxaram
e arrastaram Nhô Augusto, pelo atalho do rancho do Barranco, que ficou sendo um
caminho de pragas e judiação.
E,
quando chegaram ao rancho do Barranco, ao fim de légua, o Nhô Augusto já vinha
quase que só carregado, meio nu, todo picado de faca, quebrado de pancadas e
enlameado grosso, poeira com sangue. Empurraram-no para o chão, e ele nem se
moveu.
— É aqui
mesmo, companheiros. Depois, é só jogar lá para baixo, p’ra nem a alma se
salvar...
Os
jagunços veteranos da chácara do Major Consilva acenderam seus cigarros, com
descanso, mal interessados na execução. Mas os quatro que tinham sido bate-paus
de Nhô Augusto mostravam maior entusiasmo, enquanto o capiauzinho sem testa,
diligente e contente, ia ajuntar lenha para fazer fogo.
E, aí,
quando tudo esteve a ponto, abrasaram o ferro com a marca do gado do Major —
que soía ser um triângulo inscrito numa circunferência — , e imprimiram-na, com
chiado, chamusco e fumaça, na polpa glútea direita de Nhô Augusto. Mas recuaram
todos, num susto, porque Nhô Augusto viveu-se, com um berro e um salto,
medonhos.
—
Segura!
Mas já
ele alcançara a borda do barranco, e pulara no espaço. Era uma altura, O corpo
rolou, lá embaixo, nas moitas, se sumindo.
— Por
onde é que a gente passa, p’ra poder ir ver se ele morreu?
Mas um
dos capangas mais velhos disse melhor: — Arma uma cruz aqui mesmo, Orósio, para
de noite ele não vir puxar teus pés...
E deram
as costas, regressando, sob um sol mais próximo e maior.
Mas o
preto que morava na boca do brejo, quando calculou que os outros já teriam ido
embora, saiu do seu esconso, entre as taboas, e subiu aos degraus de mato do pé
do barranco. Chegou-se. Encontrou vida funda no corpo tão maltratado do homem
branco; chamou a preta, mulher do preto que morava na boca do brejo, e juntos
carregaram Nhô Augusto para o casebre dos dois, que era um cofo de barro seco,
sob um tufo de capim podre, mal erguido e mal avistado, no meio das árvores,
como um ninho de maranhões.
E o
preto foi cortar padieiras e travessas, para um esquife, enquanto a preta
procurava um coto de vela benta, para ser posta na mão do homem, na hora do “Diga
Jesus comigo, irmão”...
Mas,
nessa espera, por surpresa, deu-se que Nhô Augusto pôs sua pessoa nos olhos, e
gemeu:
— Me
matem de uma vez, por caridade, pelas chagas de Nosso Senhor...
Depois,
falou coisas sem juízo, para gente ausente, pois estava lavorando de quente e
tinha mesmo de delirar.
— Deus
que me perdoe, — resmungou a preta, — mas este homem deve de ser ruim feito
cascavel barreada em buraco, porque está variando que faz e acontece, e é só
braveza de matar e sangrar... E ele chama por Deus, na hora da dor forte, e
Deus não atende, nem para um fôlego, assim num desamparo como eu nunca vi!
Mas o
negro só disse:
— Os
outros não vão vir aqui, para campear defunto, porque a pirambeira não tem
descida, só dando muita volta por longe. E, como tem um bezerro morto, na
biboca, lá de cima vão pensar que os urubus vieram por causa do que eles estão
pensando...
Deitado
na esteira, no meio de molambos, no canto escuro da choça de chão de terra, Nhô
Augusto, dias depois, quando voltou a ter noção das coisas, viu que tinha as
pernas metidas em toscas talas de taboca e acomodadas em regos de telhas,
porque a esquerda estava partida em dois lugares, e a direita num só, mas com
ferida aberta. As moscas esvoaçavam e pousavam, e o corpo todo lhe doía, com
costelas também partidas, e mais um braço, e um sofrimento de machucaduras e
cortes, e a queimadura da marca de ferro, como se o seu pobre corpo tivesse
ficado imenso.
Mesmo
assim, com isso tudo, ele disse a si que era melhor viver. Bebeu mingau ralo de
fubá, e a preta enrolou para ele um cigarro de palha. Em sua procura não
aparecera ninguém. Podia sarar. Podia pensar.
Mas, de
tardinha, chegou a hora da tristeza; com grunhidos de porcos, ouvidos através
das fendas da parede, e os ruflos das galinhas, procurando poleiro nos galhos,
e a negra, lá fora, lavando as panelas e a cantar:
As
árvores do Mato Bento deitam no chão p’ra dormir...
E havia
também, quando a preta parava, as cantigas miúdas dos bichinhos mateiros e os
sons dos primeiros sapos.
Esfriou
o tempo, antes do anoitecer. As dores melhoraram. E, aí, Nhô Augusto se lembrou
da mulher e da filha. Sem raiva, sem sofrimento, mesmo, só com uma falta de ar
enorme, sufocando. Respirava aos arrancos, e teve até medo, porque não podia
ter tento nessa desordem toda, e era como se o corpo não fosse mais seu. Até
que pôde chorar, e chorou muito, um choro solto, sem vergonha nenhuma, de
menino ao abandono. E, sem saber e sem poder, chamou alto soluçando:
— Mãe...
Mãe...
O preto,
que estava sentado, pondo chumbada no anzol, no pé da porta de casa, ouviu e
ficou atrapalhado; chamou a preta, que veio ligeira e se enterneceu: — Não faz
assim, seu moço, não desespera. Reza, que Deus endireita tudo... P’ra tudo Deus
dá o jeito!
E a
preta acendeu a candeia, e trouxe uma estampa de Nossa Senhora do Rosário, e o
terço.
Agora,
parado o pranto, a tristeza tomou conta de Nhô Augusto. Uma tristeza mansa, com
muita saudade da mulher e da filha, e com um dó imenso de si mesmo. Tudo
perdido!
O resto,
ainda podia... Mas, ter a sua família, direito, outra vez, nunca. Nem a
filha... Para sempre... E era como se tivesse caído num fundo de abismo, em
outro mundo distante.
E ele
teve uma vontade virgem, uma precisão de contar a sua desgraça, de repassar as
misérias da sua vida. Mas mordeu a fala e não desabafou. Também não rezou.
Porém a luzinha da candeia era o pavio, a tremer, com brilhos bonitos no poço
de azei te, contando histórias da infância de Nhô Augusto, histórias mal
lembradas, mas todas de bom e bonito final. Fechou os olhos. Suas mãos, uma na
outra, estavam frias. Deu-se ao cansaço.
Dormiu.
E desse
modo ele se doeu no enxergão, muitos meses, porque os ossos tomavam tempo para
se ajuntar, e a fratura ex posta criara bicheira. Mas os pretos cuidavam muito
dele, não arrefecendo na dedicação.
— Se eu
pudesse ao menos ter absolvição dos meus pecados!...
Então
eles trouxeram, uma noite, muito à escondida, o padre, que o confessou e
conversou com ele, muito tempo, dando-lhe conselhos que o faziam chorar.
— Mas,
será que Deus vai ter pena de mim, com tanta ruindade que fiz, e tendo nas
costas tanto pecado mortal?!
— Tem,
meu filho. Deus mede a espora pela rédea, e não tira o estribo do pé de
arrependido nenhum...
E por aí
a fora foi, com um sermão comprido, que acabou depondo o doente num desvencido
torpor.
— Eu
acho boa essa ideia de se mudar para longe, meu filho. Você não deve pensar
mais na mulher, nem em vinganças. Entregue para Deus, e faça penitência. Sua
vida foi entortada no verde, mas não fique triste, de modo nenhum, porque a
tristeza é aboio de chamar o demônio, e o Reino do Céu, que é o que vale,
ninguém tira de sua algibeira, desde que você esteja com a graça de Deus, que
ele não regateia a nenhum coração contrito!
— Fé eu
tenho, fé eu peço, Padre...
— Você
nunca trabalhou, não é? Pois, agora, por diante, cada dia de Deus você deve
trabalhar por três, e ajudar os outros, sempre que puder. Modere esse mau
gênio: faça de conta que ele é um poldro bravo, e que você é mais mandante do
que ele... Peça a Deus assim, com esta jaculatória: “Jesus, manso e humilde de
coração, fazei meu coração semelhante ao vosso...”
E,
páginas adiante, o padre se portou ainda mais excelente mente, porque era mesmo
uma brava criatura. Tanto assim, que, na despedida, insistiu: — Reze e
trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que
às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito
pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a
sua.
E, lá
fora, ainda achou de ensinar à preta um enxofre e tal para o gogo dos frangos,
e aconselhou o preto a pincelar água de cal no limoeiro, e a plantar tomateiros
e pés de mamão.
Meses
não são dias, e a vida era aquela, no chão da choupana. Nhô Augusto comia,
fumava, pensava e dormia. E tinha peque nas esperanças: de amanhã em diante, o
lado de cá vai doer menos, se Deus quiser... — E voltou a recordar todas as
rezas aprendidas na meninice, com a avó. Todas e muitas mais, mesmo as mais
bobas de tanta deformação e mistura: as que o preto engrolava, ao lavar-lhe com
creolina a ferida da perna, e as que a preta murmurava, benzendo a cuja d’água,
ao lhe dar de beber.
E
somente essas coisas o ocupavam, porque para ele, féria feita, a vida já se acabara,
e só esperava era a salvação da sua alma e a misericórdia de Deus Nosso Senhor.
Nunca mais seria gente! O corpo estava estragado, por dentro, e mais ainda a
ideia. E tomara um tão grande horror às suas maldades e aos seus malfeitos
passados, que nem podia se lembrar; e só mesmo rezando.
Espantava
as ideias tristes, e, com o passar do tempo, tudo isso lhe foi dando uma
espécie nova e mui serena de alegria. Esteve resignado, e fazia compridos
progressos na senda da conversão.
Quando
ficou bom para andar, escorando-se nas muletas que o preto fabricara, já tinha
os seus planos, menos maus, cujo ponto de início consistia em ir para longe,
para o sitiozinho perdido no sertão mais longínquo uma data de dez alqueires,
que ele não conhecia nem pensara jamais que teria de ver, mas que era agora a
única coisa que possuía de seu. Antes de partir, teve com o padre uma
derradeira conversa, muito edificante e vasta. E, junto com o casal de pretos
samaritanos, que, ao hábito de se desvelarem, agora não o podiam deixar nem por
nada, pegou chão, sem paixão.
Largaram
à noite, porque o começo da viagem teria de ser uma verdadeira escapada. E, ao
sair, Nhô Augusto se ajoelhou, no meio da estrada, abriu os braços em cruz, e
jurou: — Eu vou p’ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez
há de chegar...
P’ra o
céu eu vou, nem que seja a porrete!... E os negros aplaudiram, e a turminha
pegou o passo, a caminho do sertão. Foram noite a fora, na derrota dos
criminosos fugidos, dormindo de dia e viajando de noite, como cativos
amocambados, de quilombo a quilombo. Para além do Bacupari, do Boqueirão, da
Broa, da Vaca e da Vacaria, do Peixe-Bravo, dos Tachos, do Tamanduá, da
Serra-Fria, e de todos os muitos arraiais jazentes na reta das léguas, ao pé
dos verdes morros e dos morros de cristais brilhantes, entre as varjarias e os
cordões-de-mato. E deixavam de lado moendas e fazendas, e as estradas com
cancelas, e roçarias e sítios de monjolos, e os currais do Fonseca, e a pedra
quadrada dos irmãos Trancoso; e mesmo as grandes casas velhas, sem gente mais
morando, vazias como os seus currais. E dormiam nas brenhas, ou sob as árvores
de sombra das caatingas, ou em ranchos de que todos são donos, à beira das
lagoas com patos e das lagoas cobertas de mato. Atravessaram o Rio das Rãs e o
Rio do Sapo. E vieram, por picadas penhascosas e sendas de pedregulho, contra
as serras azuis e as serras amarelas, sempre. L Depois, por baixadas, com
outeiros, terras mansas. E em paragens ripuárias, mas evitando a linha dos
vaus, sob o vôo das garças, — os caminhos por onde as boiadas vêm, beirando os
rios.
E assim
se deu que, lá no povoado do Tombador, — onde, às vezes, pouco às vezes e
somente quando transviados da boa rota, passavam uns bruaqueiros tangendo
tropa, ou uns baianos corajosos migrando rumo sul, — apareceu, um dia, um homem
esquisito, que ninguém não podia entender.
Mas
todos gostaram logo dele, porque era meio doido e meio santo; e compreender
deixaram para depois.
Trabalhava
que nem um afadigado por dinheiro, mas, no feito, não tinha nenhuma ganância e
nem se importava com acrescentes: o que vivia era querendo ajudar os outros.
Capinava para si e para os vizinhos do seu fogo, no querer de repartir, dando
de amor o que possuísse. E só pedia, pois, serviço para fazer, e pouca ou
nenhuma conversa.
O casal
de pretos, que moravam junto com ele, era quem mandava e desmandava na casa,
não trabalhando um nada e vivendo no estadão. Mas, ele, tinham-no visto
mourejar até dentro da noite de Deus, quando havia luar claro.
Nos
domingos, tinha o seu gosto de tomar descanso: batendo mato, o dia inteiro, sem
sossego, sem espingarda nenhuma e nem nenhuma arma para caçar; e, de tardinha,
fazendo parte com as velhas corocas que rezavam o terço ou os meses dos santos.
Mas fugia às léguas de viola ou sanfona, ou de qualquer outra qualidade de
música que escuma tristezas no coração.
Quase
sempre estava conversando sozinho, e isso também era de maluco, diziam; porque
eles ignoravam que o que fazia era apenas repetir, sempre que achava preciso, a
fala final do padre:
— “Cada
um tem a sua hora e a sua vez: você há-de ter a sua”. — E era só.
E assim
se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem
tirar e nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada,
e não é um caso acontecido, não senhor.
Quem
quisesse, porém, durante esse tempo, ter dó de Nhô Augusto, faria grossa
bobagem, porquanto ele não tinha tentações, nada desejava, cansava o corpo no
pesado e dava rezas para a sua alma, tudo isso sem esforço nenhum, como os
cupins que levantam no pasto murundus vermelhos, ou como os tico ticos, que
penam sem cessar para levar comida ao filhote de pássaro-preto bico aberto, no
alto do mamoeiro, a pedir mais.
Esta
última lembrança era do povo do Tombador, já que em toda a parte os outros
implicam com os que deles se desinteressam, e que o pessoal nada sabia das
alheias águas passadas, e nem que o negro e a negra eram agora pai e mãe de Nhô
Augusto.
Também,
não fumava mais, não bebia, não olhava para o bom-parecer das mulheres, não
falava junto em discussão. Só o que ele não podia era se lembrar da sua
vergonha; mas, ali, naquela biboca perdida, fim-de-mundo, cada dia que descia
ajudava a esquecer.
Mas,
como tudo é mesmo muito pequeno, e o sertão ainda é menor, houve que passou por
lá um conhecido velho de Nhô Augusto — o Tião da Thereza — à procura de
trezentas reses de uma boiada brava, que se desmanchara nos gerais do alto Urucuja,
estourando pelos cem caminhos sem fim do chapadão.
Tião da
Thereza ficou bobo de ver Nhô Augusto. E, como era casca-grossa, foi logo dando
as notícias que ninguém não tinha pedido: a mulher, Dona Dionóra, continuava
amigada com seu Ovídio, muito de-bem os dois, com tenção até em casamento de
igreja, por pensarem que ela estava desimpedida de marido; com a filha, sim, é
que fora uma tristeza: crescera sã e se encorpara uma mocinha muito linda, mas
tinha caído na vida, seduzida por um cometa, que a levara do arraial, para onde
não se sabia... O Major Consilva prosseguia mandando no Murici, e arrematara as
duas fazendas de Nhô Augusto... Mas o mais mal-arrumado tinha sido com o Quim,
seu antigo camarada, o pobre do Quim Recadeiro — “Se alembra?” — Pois o Quim
tinha morrido de morte matada, com mais de vinte balas no corpo, por causa
dele, Nhô Augusto: quando soube que seu patrão tinha sido assassinado, de mando
do Major, não tivera dúvida: ...jurou desforra, beijando a garrucha, e não
esperou café coado! Foi cuspir no canguçu detrás da moita, e ficou morto, mas
já dentro da sala de jantar do Major, e depois de matar dois capangas e ferir
mais um...
— Pára,
chega, Tião! ... Não quero saber de mais coisa nenhuma! Só te peço é para fazer
de conta que não me viu, e não contar p’ra ninguém, pelo amor de Deus, por amor
de sua mulher, de seus filhos e de tudo o que para você tem valor!... Não é
mentira muita, porque é a mesma coisa em como se eu tivesse morrido mesmo...
Não tem mais nenhum Nhô Augusto Estêves, das Pindaíbas, Tião...
— Estou
vendo, mesmo. Estou vendo...
E Tião
da Thereza pôs, nos olhos, na voz e no meio-aberto da boca, tanto nojo e
desprezo, que Nhô Augusto abaixou o queixo; e nem adiantou repetir para si
mesmo a jaculatória do coração manso e humilde: teve foi de sair, para trás das
bananeiras, onde se ajoelhou e rejurou: — P’ra o céu eu vou, nem que seja a
porrete!...
E foi
bom passo que nesse dia um homem chamado Romualdo, morador à beira da cava,
precisou de ajuda para tirar uma égua do atoleiro, e Nhô Augusto teve trabalho
até tarde da noite, com fogueira acesa e tocha na mão.
Mas, daí
em seguida, ele não guardou mais poder para espantar a tristeza. E, com a
tristeza, uma vontade doente de fazer coisas mal-feitas, uma vontade sem calor
no corpo, só pensada: como que, se bebesse e cigarrasse, e ficasse sem
trabalhar nem rezar, haveria de recuperar sua força de homem e seu acerto de
outro tempo, junto com a pressa das coisas, como os outros sabiam viver.
Mas, a
vergonheira atrasada? E o castigo? O padre bem que tinha falado: — “Você, em
toda sua vida, não tem feito senão pecados muito graves, e Deus mandou estes
sofrimentos só para um pecador poder ter a ideia do que o fogo do inferno
é!...”
Sim, era
melhor rezar mais, trabalhar mais e escorar firme, para poder alcançar o
reino-do-céu. Mas o mais terrível era que o desmazelo de alma em que se achava
não lhe deixava esperança nenhuma do jeito de que o Céu podia ser.
—
Desonrado, desmerecido, marcado a ferro feito rês, mãe Quitéria, e assim tão
mole, tão sem homência, será que eu posso mesmo entrar no céu?!...
— Não
fala fácil, meu filho!... Dei’ stá: debaixo do angu tem molho, e atrás de morro
tem morro.
— Isso
sim... Cada um tem a sua vez, e a minha hora há-de chegar!...
E,
enquanto isso tudo, Nhô Augusto estava no escuro e sozinho, cercado de capiaus
descalços, vestidos de riscado e seriguilha tinta, sem padre nenhum com quem
falar. E essa era a consequência de um estouro de boiada na vastidão do
planalto, por motivo de uma picada de vespa na orelha de um marruás bravio,
combinada com a existência, neste mundo, do Tião da Thereza. E tudo foi bem
assim, porque tinha de ser, já que assim foi.
Apenas,
Nhô Augusto se confessou aos seus pretos tutelares, longamente, humanamente, e
foi essa a primeira vez. E, no fim, desabafou: que era demais o que estava
purgando pelos seus pecados, e que Nosso Senhor se tinha esquecido dele! ‘A
mulher, feliz, morando com outro... A filha, tão nova, e já na mão de todos,
rolando por este mundo, ao deus-dará... E o Quim, o Quim Recadeiro — um
rapazinho miúdo, tão no desamparo — e morrendo como homem, por causa do
patrão... um patrão de borra, que estava p’r’ali no escondido, encostado, que
nem como se tivesse virado mulher!...
— O
resto é peso p’ra dia, mãe Quitéria... Mas, como é? Como é que eu vou me
encontrar com o Quim lá com Deus, com que cara?!... E eu já fui zápede, já pus
fama em feira, mãe Quitéria! Na festa do Rosário, na Tapera... E um dia em que
enfrentei uns dez, fazendo todo-o-mundo correr... Desarmei e dei pancada, no
Sergipão Congo, mãe Quitéria, que era mão que desce, mesmo monstro matador!...
E a briga, com a família inteira, pai, irmão, tio, da moça que eu tirei de
casa, semana em antes de se casar?!
— Vira o
demônio de costas, meu filho... Faz o que o seu padre mandou!
— E é o
diabo mesmo, mãe Quitéria... Eu sei... Ou então é castigo, porque eu vou me
lembrar dessas coisas logo agora, que o meu corpo não está valendo, nem que eu
queira, nem p’ra brigar com homem e nem p’ra gostar de mulher...
— Rezo o
credo!
Mas Nhô
Augusto, que estava de cócoras, sentou-se no chão e continuou: — Tem horas em
que fico pensando que, ao menos por honrar o Quim, que morreu por minha causa,
eu tinha ordem de fazer alguma vantagem... Mas eu tenho medo... Já sei como é
que o inferno é, mãe Quitéria... Podia ir procurar a coitadinha da minha filha,
que talvez esteja sofrendo, precisando de mim... Mas eu sei que isso não é eito
meu, não é não. Tenho é de ficar pagando minhas culpas, penando aqui mesmo, no
sozinho. Já fiz penitência estes anos todos, e não posso ter prejuízo deles! Se
eu quisesse esperdiçar essa penitência feita, ficava sem uma coisa e sem
outra... Sou um desgraçado, mãe Quitéria, mas o meu dia há-de chegar!... A
minha vez...
E assim
nesse parado Nhô Augusto foi indo muito tempo, se acostumando com os novos
sofrimentos, mais meses. Mas sempre saía para servir aos outros, quando
precisavam, ajudava a carregar defuntos, visitava e assistia gente doente, e
fazia tudo com uma tristeza bondosa, a mais não ser.
Até que,
pouco a pouco, devagarinho, imperceptível, alguma cousa pegou a querer voltar
para ele, a crescer-lhe do fundo para fora, sorrateira como a chegada do tempo
das águas, que vinha vindo paralela: com o calor dos dias aumentando, e os dias
cada vez maiores, e o joão-de-barro construindo casa nova, e as sementinhas,
que hibernavam na poeira, esperando na poeira, em misteriosas incubações. Nhô
Augusto agora tinha muita fome e muito sono. O trabalho entusiasmava e era
leve. Não tinha precisão de enxotar as tristezas.
Não
pensava nada... E as mariposas e os cupins-de-asas vinham voar ao redor da
lamparina... Círculo rodeando a lua cheia, sem se encostar... E começaram os cantos.
Primeiro,
os sapos: — “Sapo na seca coaxando, chuva beirando”, mãe Quitéria!... —
Apareceu uma jia na horta, e pererecas dentro de casa, pelas paredes... E os
escorpiões e as minhocas pulavam no terreiro, perseguidos pela correição das
lava-pés, em préstitos atarefados e compridos... No céu sul, houve nuvens
maiores, mais escuras. Aí, o peixe-frito pegou a cantar de noite. A casca de
lua, de bico para baixo, “despejando”... Um vento frio, no fim do calor do
dia... Na orilha do atoleiro, a saracura fêmea gritou, pedindo três potes, três
potes, três potes para apanhar água... Choveu.
Então,
tudo estava mesmo muito mudado, e Nhô Augusto, de repente, pensou com a ideia
muito fácil, e o corpo muito bom. Quis se assustar, mas se riu: — Deus está
tirando o saco das minhas costas, mãe Quitéria! Agora eu sei que ele está se
lembrando de mim...
— Louvor
ao Divino, meu filho! E, uma vez, manhã, Nhô Augusto acordou sem saber por que
era que ele estava com muita vontade de ficar o dia inteiro deitado, e achando,
ao mesmo tempo, muito bom se levantar.
Então,
depois do café, saiu para a horta cheirosa, cheia de passarinhos e de verdes, e
fez uma descoberta: por que não pitava?! ... Não era pecado... Devia ficar
alegre, sempre alegre, e esse era um gosto inocente, que ajudava a gente a se
alegrar...
E isso
foi pensado muito ligeiro, porque já ele enrolava a palha, com uma pressa
medonha, como se não tivesse curtido tantos anos de abstenção. Tirou tragadas,
soltou muitas fumaças, e sentiu o corpo se desmanchar, dando na fraqueza, mas
com uma tremura gostosa, que vinha até ao mais dentro, parecendo que a gente ia
virar uma chuvinha fina.
Não, não
era pecado!... E agora rezava até muito melhor e podia esperar melhor, mais sem
pressa, a hora da libertação.
E, pois,
foi aí por aí, dias depois, que aconteceu uma coisa até então jamais vista, e até
hoje mui lembrada pelo povinho do Tombador.
Vindos
do norte, da fronteira velha-de-guerra, bem monta dos, bem enroupados, bem
apessoados, chegaram uns oito homens, que de longe se via que eram valentões:
primeiro surgiu um, dianteiro, escoteiro, que percorreu, de ponta a ponta, o
povoado, pedindo água à porta de uma casa, pedindo pousada em outra, espiando
muito para tudo e fazendo pergunta e pergunta; depois, então, apareceram os outros,
equipados com um despropósito de armas — carabinas, novinhas quase; garruchas,
de um e de dois canos; revólveres de boas marcas; facas, punhais, quicés de
cabos esculpidos; porretes e facões, — e transportando um excesso de breves nos
pescoços.
O bando
desfilou em formação espaçada, o chefe no meio. E o chefe — o mais forte e o
mais alto de todos, com um lenço azul enrolado no chapéu de couro, com dentes
brancos limados em acume, de olhar dominador e tosse rosnada, mas sorriso
bonito e mansinho de moça — era o homem mais afamado dos dois sertões do rio:
célebre do Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitaí à barra do
Verde Grande, do Rio Gavião até nos Montes Claros, de Carinhanha até Paracatu;
maior do que Antônio D ou Indalécio; o arranca-toco, o treme-terra, o
come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-ti-eta, o tira-prosa, o parteferro, o
rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu Joãozinho Bem-Bem.
O povo
não se mexia, apavorado, com medo de fechar as portas, com medo de ficar na
rua, com medo de falar e de ficar calado, com medo de existir. Mas Nhô Augusto,
que vinha de vir do mato, carregando um feixe de lenha para um homem chamado
Tobias da Venda, quando soube do que havia, jogou a carga no chão e correu ao
encontro dos recém-chegados.
Então o
bandido Flosino Capeta, um sujeito cabeça-de-canoa, que nunca se apartava do
chefe, caçoou:
— Que
suplicante mais estúrdio será esse, que vem vindo ali, feito sombração?!
Mas seu
Joãozinho Bem-Bem fez o cavalo avançar duas passadas, e disse: — Não debocha,
companheiro, que eu estou gostando do jeito deste homem caminhar!
E
Flosino Capeta pasmou deveras, porque era a coisa mais custosa deste mundo seu
Joãozinho Bem-Bem se agradar de alguém ao primeiro olhar.
Mas Nhô
Augusto, parecendo não ver os demais, veio direi to ao chefe, encarando-o firme
e perguntando:
— O
senhor, de sua graça, é que é mesmo o seu Joãozinho Bem-Bem, pois não é?
— P’ra
lhe servir, meu senhor.
— A
pois, se o senhor não se acanha de entrar em casa de pobre, eu lhe convido para
passar mal e se arranchar comigo, enquanto for o tempo de querer ficar por
aqui... E de armar sua rede debaixo do meu telhado, que vai me dar muita
satisfação!
— Eu
aceito sua bondade, mano velho. Agora, preciso é de ver quem é mais, desse
povinho assustado, que quer agasalhar o resto da minha gente...
— Pois
eu gostava era que viessem todos juntos para o meu rancho...
— Não
será abuso, mano velho?
— É
não... E de coração.
— Pois
então, vamos, que Deus lhe pagará!
E seu
Joãozinho Bem-Bem, que, com o rabo-do-olho, não deixava de vigiar tudo em
volta, virou-se, rápido, para o Epifânio, que mexia com a winchester: — Guarda
a arma, companheiro, que eu já disse que não quero essa moda de brincar de dar
tiro à toa, à toa, só por amor de espantar os moradores do lugar!...Vamos chegando!
Guia a gente, mano velho.
E aí o
casal de pretos, em grande susto, teve de se afanar, num corre-corre de depenar
galinhas, matar leitoa, procurar ovos e fazer doces. E Nhô Augusto, depois de
buscar ajuda para tratar dos cavalos, andou de casa em casa, arrecadando aluá,
frutas, quitandas, fumo cheiroso, muita cachaça, e tudo o mais que de fino
houvesse, para os convidados. E os seus convidados achavam imensa graça naquele
homem, que se atarefava em servi-los, cheio de atenções, quase de carinhos, com
cujo motivo eles não topavam atinar. Tinham armado as redes de fibra nas
árvores do quintal, e repousavam, cada qual com o complicado arsenal bem ao
alcance da mão. Então seu Joãozinho Bem-Bem contou a Nhô Augusto: estava de
passagem, com uma pequena parte do seu bando, para o sul, para o arraial das
Taquaras, na nascença do Manduri, a chamado de seu amigo Nicolau Cardoso,
atacado por um mandão fazendeiro, de injustiça. E Flosino Capeta acrescentou: —
Diz’que o tal tomou reforço, com três tropas de serranos, mas é só a gente
chegar lá, para não se ver ninguém mais... Eles têm que “dar o beiço e cair o
cacho”, seu moço!... Mas a gente nem pode mais ter o gosto de brigar, porque o
pessoal não aparece, no falar de entrar no meio do seu Joãozinho Bem-Bem...
Mas seu
Joãozinho Bem-Bem interrompeu o outro: — Prosa minha não carece de contar,
companheiro, que to do o mundo já sabe.
Nhô
Augusto passeava com os olhos, que nunca ninguém tinha visto tão grandes nem
tão redondos, mostrando todo o branco ao redor. Seu Joãozinho Bem-Bem ria um
riso descansado, e os outros riam também, circundando-o, obedientes.
— A
gente não ia passar, porque eu nem sabia que aqui tinha este comercinho...
Nosso caminho era outro. Mas de uma banda do rio tinha a maleita, e da outra
está reinando bexiga da brava... E falaram também numa soldadesca, que vem lá
da Diamantina... Por isso a gente deu tanta volta.
Os
pretos trouxeram a janta, para o meio do pátio. Era um banquete. E quando a
turma se pôs em roda, para começar a comer, o anfitrião fez o sinal da cruz e
rezou alto; e os outros o acompanharam, com o que Nhô Augusto deu mostras de
exultar.
— O
senhor, que é o dono da casa, venha comer aqui perto de mim, mano velho... —
pediu seu Joãozinho Bem-Bem. — Mas, que é que o senhor está gostando tanto
assim de apreciar? Ah, é o Tim?... Isso é morrinha de quartel... Ele é
reiúno...
Nhô
Augusto namorava o Tim Tatu-tá-te-vendo, desertor do Exército e de três
milícias estaduais, e que, por isso mesmo e sem querer, caminhava marchando, e,
para falar com alguém, se botava de sentido, em estricta posição.
— Esta
guarda guerreira acompanha o senhor há muito tempo, seu Joãozinho Bem-Bem?
O chefe
acertou a sujigola e tossiu, para responder: — Alguns. É tudo gente limpa...
Mocorongo eu não aceito comigo! Homem que atira de trás do toco não me serve...
Gente minha sé mata as mortes que eu mando, e morte que eu mando é sé morte
legal!
— Epa,
ferro!.., — exclamou Nhô Augusto, balançando o corpo. Seu Joãozinho Bem-Bem
continuou:
— Povo
sarado e escovado... Mas eles todos me dão trabalho... Este aqui é baiano, fala
mestre... Cabeça-chata é outro, porque eles avançam antes da hora... Não é
gente fácil...
Nem
goiano, porque não é andejo... E nem mineiro, porque eles andam sempre com a
raiva fora-de-hora, e não gostam de parar mais, quando começam a brigar... Mas,
pessoal igual ao meu, não tem!
— E o
senhor também não é mineiro, seu Joãozinho Bem-Bem?
— Isso
sim, que sou... Sou da beira do rio... Sei lá de onde é que eu sou?!... Mas,
por me lembrar, mano velho, não leve a mal o que eu vou lhe pedir: sua janta
está de primeira, está boa até de regalo.., mas eu ando muito escandecido e meu
estômago não presta p’ra mais...
Se for
coisa de pouco incômodo, o que eu queria era que o senhor mandasse aprontar
para mim uma jacuba quente, com a rapadura bem preta e a farinha bem fina, e
com umas folhinhas de laranja-da-terra no meio... Será que pode?
— Já,
já...Vou ver.
— Deus
lhe ajude, mano velho.
Enquanto
isso, os outros devoravam, com muita esganação e lambança. E, quando Nhô Augusto
chegou com a jacuba, interpelou-o o Zeferino, que multiplicava as sílabas, com
esforço, e, como tartamudo teimoso, jogava, a cada sílaba, a cabeça para trás:
— Pois eu... eu est-t-tou m’me-espan-t-tando é de uma c’coisa, meu senhor: é
de, neste jantar, com t-t-tantas c’come rias finas, não haver d-d-duas delas,
das mais principais!
— Que é
que está fazendo falta, amigo?
— É o
m’molho da sa-mam-baia e a so-p-p’pa da c’c’an jiquinha!
Nhô
Augusto sorriu:
— Eu
agaranto que, na hora da zoeira, tu no pinguelo não gagueja!
— Que
nada! — apoiou seu Joãozinho Bem-Bem. — Isto é cabra macho e remacheado, que dá
pulo em-cruz...
Já Nhô
Augusto, incansável, sem querer esperdiçar detalhe, apalpava os braços do
Epifânio, mulato enorme, de musculatura embatumada, de bicipitalidade maciça. E
se voltava para o Juruminho, caboclo franzino, vivo no menor movimento, ágil
até no manejo do garfo, que em sua mão ia e vinha como agulha de coser: — Você,
compadre, está-se vendo que deve de ser um corisco de chegador!...
E o
Juruminho, gostando.
— Chego
até em porco-espinho e em tatarana-rata, e em homem de vinte braços, com vinte
foices para sarilhar!... Deito em ponta de chifre, durmo em ponta de faca, e
amanheço em riba do meu colchão!... Está aí nosso chefe, que diga... E mais isto
aqui...
E
mostrou a palma da mão direita, lanhada de cicatrizes, de pegar punhais pelo
pico, para desarmar gente em agressão.
Nhô
Augusto se levantara, excitado:
— Opa!
Oi-ai!... A gente botar você, mais você, de longe, com as clavinas... E você
outro, aí, mais este compadre de cara séria, p’ra voltearem... E este
companheirinho chegador, para chegar na frente, e não dizer até-logo!... E
depois chover sem chuva, com o pau escrevendo e lendo, e arma-de-fogo
debulhando, e homem mudo gritando, e os do-lado-de-lá correndo e pedindo
perdão!...
Mas, aí,
Nhô Augusto calou, com o peito cheio; tomou um ar de acanhamento; suspirou e
perguntou:
— Mais
galinha, um pedaço, amigo?
— ‘Tou
feito.
— E
você, seu barra?
—
Agradecido... ‘Tou encalcado... ‘Tou cheio até à tampa! Enquanto isso, seu
Joãozinho Bem-Bem, de cabeça entorna da, não tirava os olhos de cima de Nhô
Augusto. E Nhô Augusto, depois de servir a cachaça, bebeu também, dois goles, e
pediu uma das papo-amarelo, para ver: — Não faz conta de balas, amigo? Isto é
arma que cursa longe...
— Pode
gastar às oito. Experimenta naquele pássaro ali, na pitangueira...
— Deixa
a criaçãozinha de Deus. Vou ver só se corto o galho... Se errar, vocês não
reparem, porque faz tempo que eu não puxo dedo em gatilho...
Fez
fogo.
— Mão
mandona, mano velho. Errou o primeiro, mas acertou um em dois...
Ferrugem
em bom ferro!
Mas,
nesse tento, Nhô Augusto tornou a fazer o pelo-sinal e entrou num desânimo, que
o não largou mais. Continuou, porém, a cuidar bem dos seus hóspedes, e, como o
pessoal se acomodara ali mesmo, nas redes, ao relento, com uma fogueira acesa
no meio do terreiro, ele só foi dormir tarde da noite, quando não houve mais
nem um para contar histórias de conflitos, assaltos e duelos de exterminação.
Cedinho
na manhã seguinte, o grupo se despediu. Joãozinho Bem-Bem agradeceu muito o
agasalho, e terminou:
— O
senhor, mano velho, a modo e coisa que é assim meio diferente, mas eu estou lhe
prestando atenção, este tempo todo, e agora eu acho, pesado e pago, que o
senhor é mas é pessoa boa mesmo, por ser. Nossos anjos-da-guarda combinaram, e
isso para mim é o sinal que serve. A pois, se precisar de alguma coisa, se tem
um recado ruim para mandar para alguém... Tiver algum inimigo alegre, por aí, é
só dizer o nome e onde mora. Tem não?
Pois,
‘tá bom. Deus lhe pague suas bondades.
— Vão
com Deus! Até à volta, vocês todos. ‘Té a volta, seu Joãozinho Bem-Bem! Mas,
depois de montado, o chefe ainda chamou Nhô Augusto, para dizer: — Mano velho,
o senhor gosta de brigar, e entende. Está-se vendo que não viveu sempre aqui
nesta grota, capinando roça e cortando lenha... Não quero especular coisa de
sua vida p’ra trás, nem se está se escondendo de algum crime. Mas, comigo é que
o senhor havia de dar sorte! Quer se amadrinhar com meu povo? Quer vir junto?
— Ah,
não posso! Não me tenta, que eu não posso, seu Joãozinho Bem-Bem...
— Pois
então, mano velho, paciência.
— Mas
nunca que eu hei de me esquecer dessa sua bizarria, meu amigo, meu parente, seu
Joãozinho Bem-Bem!
Aí, o
Juruminho, que tinha ficado mais para trás, de propósito, se curvou para Nhô
Augusto e pediu, num cochicho ligeiro, para que os outros não escutassem:
— Amigo,
reza por uma irmãzinha que eu tenho, que sofre de doença com muitas dores e
vive na cama entrevada, lá no arraial do Urubu... E o bando entrou na estrada,
com o Tim Tatu-tá-te-vendo puxando uma cantiga brava, de tempo de revolução:
“O terreiro lá de casa
não se varre com vassoura:
varre com ponta de sabre,
bala de metralhadora...”
Nhô
Augusto não tirou os olhos, até que desaparecessem. E depois se esparramou em
si, pensando forte. Aqueles, sim, que estavam no bom, porque não tinham de
pensar em coisa nenhuma de salvação de alma, e podiam andar no mundo, de cabeça
em-pé... Só ele, Nhô Augusto, era quem estava de todo desonrado, porque, mesmo
lá, na sua terra, se alguém se lembrava ainda do seu nome, havia de ser para
arrastá-lo pela rua-da-amargura...
O
convite de seu Joãozinho Bem-Bem, isso, tinha de dizer, é que era cachaça em
copo grande! Ah, que vontade de aceitar e ir também...
E o
oferecimento? Era só falar! Era só bulir com a boca, que seu Joãozinho Bem-Bem,
e o Tim, e o Juruminho, e o Epifânio — e todos — rebentavam com o Major
Consilva, com o Ovídio, com a mulher, com todo-o-mundo que tivesse tido mão ou
fala na sua desgarração.
Eh,
mundo velho de bambaruê e bambaruá! ... Eh, ferragem!...
E Nhô
Augusto cuspiu e riu, cerrando os dentes.
Mas,
qual, aí era que se perdia, mesmo, que Deus o castigava com mão mais dura...
E só
então foi que ele soube de que jeito estava pegado à sua penitência, e entendeu
que essa história de se navegar com religião, e de querer tirar sua alma da
boca do demônio, era a mesma coisa que entrar num brejão, que, para a frente,
para trás e para os lados, é sempre dificultoso e atola sempre mais. Recorreu
ao rompante: — Agora que eu principiei e já andei um caminho tão grande,
ninguém não me faz virar e nem andar de-fasto!
E, à
noite, tomou um trago sem ser por regra, o que foi bem bom, porque ele já
viajou, do acordado para o sono, montado num sonho bonito, no qual havia um
Deus valentão, o mais solerte de todos os valentões, assim parecido com seu
Joãozinho Bem-Bem, e que o mandava ir brigar, só para lhe experimentar a força,
pois que ficava lá em-cima, sem descuido, garantindo tudo. E, assim, dormiram
as coisas.
Deu uma
invernada brava, mas para Nhô Augusto não foi nada: passava os dias debaixo da
chuva, limpando o terreiro, sem precisão nenhuma. Depois, entestou de pôr
abaixo o mato, que conduzia até à beira do córrego os angicos de casca encoscorada
e os jacarandás anosos, da primeira geração. E era cada machadada bruta, com
ele golpeando os troncos, e gritando. E os pretos, que se estavam dando muito
bem com o sistema, traziam-lhe de vez em quando um golinho, para que ele não
apanhasse resfriado; e, como para chegarem até lá também se molhavam, tomavam
cuidado de se defender, igualmente, contra os seus resfriados possíveis.
E ainda
outras coisas tinham acontecido, e a primeira delas era que, agora, Nhô Augusto
sentia saudades de mulheres. E a força da vida nele latejava, em ondas largas,
numa tensão confortante, que era um regresso e um ressurgimento.
Assim,
sim, que era bom fazer penitência, com a tentação estimulando, com o rasto no
terreno conquistado, com o perigo e tudo. Nem pensou mais em morte, nem em ir
para o céu; e mesmo a lembrança de sua desdita e reveses parou de atormentá-lo,
como a fome depois de um almoço cheio. Bastava-lhe rezar e aguentar firme, com
o diabo ali perto, subjugado e apanhando de rijo, que era um prazer. E somente
por hábito, quase, era que ia repetindo: — Cada um tem a sua hora, e há-de
chegar a minha vez!
Tanto
assim, que nem escolhia, para dizer isso, as horas certas, as três horas fortes
do dia, em que os anjos escutam e dizem amém...
Mas,
afinal, as chuvas cessaram, e deu uma manhã em que Nhô Augusto saiu para o
terreiro e desconheceu o mundo: um sol, talqualzinho a bola de enxofre do fundo
do pote, marinhava céu acima, num azul de água sem praias, com luz jogada de um
para o outro lado, e um desperdício de verdes cá embaixo — a manhã mais bonita
que ele já pudera ver.
Estava
capinando, na beira do rego.
De
repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacas passava, tinindo
guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. Mais outro. E ainda
outro, mais baixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, gralhantes, incapazes
de acertarem as vozes na disciplina de um coro.
Depois,
um grupo verde-azulado, mais sóbrio de gritos e em fileiras mais juntas.
— Uai!
Até as maracanãs!
E mais
maitacas. E outra vez as maracanãs fanhosas. E não se acabavam mais. Quase sem
folga: era uma revoada estrilando bem por cima da gente, e outra brotando ao
norte, como pontozinho preto, e outra — grão de verdura — se sumindo no sul.
— Levou
o diabo, que eu nunca pensei que tinha tantos!
E agora
os periquitos, os periquitinhos de guinchos timpânicos, uma esquadrilha
sobrevoando outra... E mesmo, de vez em quando, discutindo, brigando, um casal
de papagaios ciumentos. Todos tinham muita pressa: os únicos que interromperam,
por momentos, a viagem, foram os alegres tuins, os minúsculos tuins de
cabecinhas amarelas, que não levam nada a sério, e que choveram nos pés de
mamão e fizeram recreio, aos pares, sem sustar o alarido —
rrrl-rrril!rrrl-rrril!...
Mas o
que não se interrompia era o trânsito das gárrulas maitacas. Um bando grazinava
alto, risonho, para o que ia na frente: — Me espera!... Me espera!... — E o
grito tremia e ficava nos ares, para o outro escalão, que avançava lá atrás.
—
Virgem! Estão todas assanhadas, pensando que já tem milho nas roças... Mas,
também, como é que podia haver um de-manhã mesmo bonito, sem as maitacas?!...
O sol ia
subindo, por cima do voo verde das aves itinerantes. Do outro lado da cerca,
passou uma rapariga. Bonita! Todas as mulheres eram bonitas. Todo anjo do céu
devia de ser mulher. E Nhô Augusto pegou a cantar a cantiga, muito velha, do
capiau exilado: “Eu quero ver a moreninha tabaroa, arregaçada, enchendo o pote
na lagoa...
Cantou,
longo tempo. Até que todas as asas saíssem do céu.
— Não
passam mais... Ô papagaiada vagabunda! Já devem de estar longe daqui...
Longe,
onde?
“Como corisca, como ronca a trovoada,
no meu sertão, na minha terra abençoada...”
Longe, onde? “Quero ir namorar com as pequenas,
com as morenas do Norte de Minas...”.
Mas, ali
mesmo, no sertão do Norte, Nhô Augusto estava. Longe onde, então?
Quando
ele encostou a enxada e veio andando para a porta da cozinha, ainda não possuía
ideia alguma do que ia fazer. Mas, dali a pouco, nada adiantavam, para retê-lo,
os rogos reunidos de mãe preta Quitéria e de pai preto Serapião.
— Adeus,
minha gente, que aqui é que mais não fico, porque a minha vez vai chegar, e eu
tenho que estar por ela em outras partes!
— Espera
o fim das chuvas, meu filho! Espera a vazante...
— Não
posso, mãe Quitéria. Quando coração está mandando, todo tempo é tempo!... E, se
eu não voltar mais, tudo o que era de meu fica sendo para vocês.
Rodolpho
Merêncio quis emprestar-lhe um jegue.
— Que
nada! Lhe agradeço o bom desejo, mas não preciso de montada, porque eu vou é
mesmo a pé...
Mas,
depois, aceitou, porque mãe Quitéria lhe recordou ser o jumento um animalzinho
assim meio sagrado, muito misturado às passagens da vida de Jesus.
E todos
sentiram muito a sua partida. Mas ele estava madurinho de não ficar mais, e,
quando chegou no sozinho, espiou só para a frente, e logo entoou uma das letras
que ouvira aos guerreiros de seu Joãozinho Bem-Bem:
“A roupa lá de casa
não se lava com sabão:
lava com ponta de sabre
e com
bala de canhão...”
Cantar,
só, não fazia mal, não era pecado. As estradas cantavam. E ele achava muitas
coisas bonitas, e tudo era mesmo bonito, como são todas as coisas, nos caminhos
do sertão.
Parou,
para espiar um buraco de tatu, escavado no barranco; para descascar um ananás
selvagem, de ouro mouro, com cheiro de presépio; para tirar mel da caixa
comprida da abelha borá; para rezar perto de um pau-d’arco florido e de um
solene pau-d’óleo, que ambos conservavam, muito de-fresco, os sinais da mão de
Deus. E, uma vez, teve de se escapar, depressa, para a meia-encosta, e ficou a
contemplar, do alto, o caminho, belo como um rio, reboante ao tropel de uma
boiada de duas mil cabeças, que rolava para o Itacambira, com a vaqueirama
encourada — piquete de cinco na testa, em cada talão sete ou oito, e, atrás,
todo um esquadrão de ulanos morenos, cantando cantigas do alto sertão.
E também
fez, um dia, o jerico avançar atrás de um urubu reumático, que claudicava
estrada a fora, um pedaço, antes de querer voar. E bebia, aparada nas mãos, a
água das frias cascatas véus-de-noivas dos morros, que caem com tom de
abundância e abandono. Pela primeira vez na sua vida, se extasiou com as
pinturas do poente, com os três coqueiros subindo da linha da montanha para se
recortarem num fundo alaranjado, onde, na descida do sol, muitas nuvens pegam
fogo. E viu voar, do mulungu, vermelho, um tié ainda mais vermelho — e o
tiépiranga pousou num ramo do barbatimão sem flores, e Nhô Augusto sentiu que o
barbatimão todo se alegrava, porque tinha agora um ramo que era de mulungu.
Viajou
nas paragens dos mangabeiros, que lhe davam dormida nas malocas, de tecto e
paredes de palmas de buriti. Retornou à beira do rio, onde os barranqueiros lhe
davam comi da, de pirão com pimenta e peixe. Depois, seguiu.
Uma tarde,
cruzou, em pleno chapadão, com um bode amarelo e preto, preso por uma corda e
puxando, na ponta da corda, um cego, esguio e meio maluco. Parou, e o cego foi
de clamando lenta e mole melopeia:
“Eu já vi um gato ler
e um
grilo sentar escola,
nas asas
de uma ema
jogar-se
o jogo da bola,
dar
louvores ao macaco.
— Eh,
zoeira! ‘Tou também!.., — aplaudiu Nhô Augusto. Já o cego estendia a mão, com a
sacola:
— “Estou
misturando aqui o dinheirinho de todos”...
Mas
mudou de projeto, enquanto Nhô Augusto caçava qualquer cobre na algibeira: —
Tem algum de-comer, aí, irmão? Dinheiro quero menos, que por aqui por estes
trechos a gente custa muito a encontrar qualquer povoado, e até as cafuas mesmo
são vasqueiras...
E
explicou: tinha um menino-guia, mas esse-um havia mais de um mês que
escapulira; e teria roubado também o bode, se o bode não tivesse berrado e ele
não investisse de porrete.
Agora,
era aquele bicho de duas cores quem escolhia o caminho... Sabia, sim, sabia
tudo!
Ótimo
para guiar... Companheiro de lei, que nem gente, que nem pessoa de sua
família...
Se
despediu. Achava a vida muito boa, e ia para a Bahia, de volta para o Caitité,
porque quando era menino tinha nascido lá.
— Pois
eu estou indo para a banda de onde você veio... Em todo o caso, meu compadre cego
por destino de Deus, em todo o caso, dá lembrança minha a todos do povo da sua
terra, toda essa gente certa, que eu não tenho ocasião de conhecer!
E aí o
jumento andou, e Nhô Augusto ainda deu um eco, para o cerrado ouvir: —
“Qualquer paixão me adiverte...“ Oh coisa boa a gente andar solto, sem
obrigação nenhuma e bem com Deus!...
E quando
o jegue empacava — porque, como todo jumento, ele era terrível de queixo-duro,
e tanto tinha de orelhas quanto de preconceitos, — Nhô Augusto ficava em cima,
mui concorde, rezando o terço, até que o jerico se decidisse a caminhar outra
vez. E também, nas encruzilhadas, deixava que o bendito as no escolhesse o
caminho, bulindo com as conchas dos ouvidos e ornejando. E bastava batesse no
campo o pio de uma perdiz magoada, ou viesse do mato a lália lamúria dos
tucanos, para o jumento mudar de rota, pendendo à esquerda ou se em pescoçando
para a direita; e, por via de um gavião casaco-de- couro cruzar-lhe à frente,
já ele estacava, em concentrado prazo de irresolução.
Mas, somadas
as léguas e deduzidos os desvios, vinham eles sempre para o sul, na direção das
maitacas viajoras. Agora, amiudava-se o aparecimento de pessoas — mais ranchos,
mais casas, povoados, fazendas; depois, arraiais, brotando do chão. E então, de
repente, estiveram a muito pouca distância do arraial do Murici.
— Não me
importo! Aonde o jegue quiser me levar, nós vamos, porque estamos indo é com
Deus!...
E assim
entraram os dois no arraial do Rala-Coco, onde havia, no momento, uma agitação
assustada no povo.
Mas,
quando responderam a Nhô Augusto: — É a jagunçada de seu Joãozinho Bem-Bem, que
está descendo para a Bahia... — ele, de alegre, não se pôde conter: — Agora
sim! Cantou p’ra mim, passarim! ... Mas, onde é que eles estão?
Estavam
aboletados, bem no centro do arraial, numa casa de fazendeiro, onde seu
Joãozinho Bem-Bem recebeu Nhô Augusto, com muita satisfação.
Nhô
Augusto caçoou:
— “Boi
andando no pasto, p’ra lá e p’ra cá, capim que acabou ou está para acabar...
— E
isso, mano velho... Livrei meu compadre Nicolau Cardoso, bom homem... E agora
vou ajuntar o resto do meu pessoal, porque tive recado de que a política se
apostemou, do lado de lá das divisas, e estou indo de rota batida para o Pilão
Arcado, que o meu amigo Franquilim de Albuquerque é capaz de precisar de mim...
Fitava
Nhô Augusto com olhos alegres, e tinha no rosto um ar paternal. Mas, na testa,
havia o resto de uma ruga.
— Está
vendo, mano velho? Quem é que não se encontra, neste mundo?... Fico prazido,
por lhe ver. E agora o senhor é quem está em minha casa... Vai se arranchar
comigo. Se abanque, mano velho, se abanque!... Arranja um café aqui p’ra o
parente, Flosino!
— Não
queria empalhar... O senhor está com pouco prazo...
— Que
nada, mano velho! Nós estamos de saída, mas ainda falta ajustar um devido, para
não se deixar rabo para trás... Depois lhe conto. O senhor mesmo vai ver, daqui
a pouco...
Come com
gosto, mano velho.
Nhô
Augusto mordia o pão de broa, e espiava, inocente, para ver se já vinha o café.
— Tem
chá de congonha, requentado, mano velho...
— Aceito
também, amigo. Estou com fome de tropeiro... Mas, qu’é de o Juruminho?
— Ah, o
senhor guardou o nome, e, a pois, gostou dele, do menino... Pois foi logo com o
pobre do Juruminho, que era um dos mais melhores que eu tinha...
— Não diga...
O rosto
de seu Joãozinho Bem-Bem foi ficando sombrio.
— O
matador — foi à traição, — caiu no mundo, campou no pé... Mas a família vai
pagar tudo, direito!
Seu
Joãozinho Bem-Bem, sentado em cima da beirada da mesa, brincava com os três
bentinhos do pescoço, e batia, muito ligeiro, os calcanhares, um no outro. Nhô
Augusto, parando de limpar os dentes com o dedo, lastimou: — Coitado do
Juruminho, tão destorcido e de tão bom parecer... Deixa eu rezar por alma
dele...
Seu
Joãozinho Bem-Bem desceu da mesa e caminhou pela sala, calado. Nhô Augusto,
cabeça baixa, sempre sentado num selim velho, dava o ar de quem estivesse com a
mente muito longe.
—
Escuta, mano velho...
Seu
Joãozinho Bem-Bem parou em frente de Nhô Augusto, e continuou: — ....eu gostei
da sua pessoa, em-desde a primeira hora, quando o senhor caminhou para mim, na
rua daquele lugarejo... Já lhe disse, da outra vez, na sua casa: o senhor não
me contou coisa nenhuma de sua vida, mas eu sei que já deve de ter sido
brigador de ofício.
Olha:
eu, até de longe, com os olhos fechados, o senhor não me engana: juro como não
há outro homem p’ra ser mais sem medo e disposto para tudo. E só o senhor mesmo
querer...
— Sou um
pobre pecador, seu Joãozinho Bem-Bem...
—
Que-o-quê! Essa mania de rezar é que está lhe perdendo... O senhor não é padre
nem frade, p’ra isso; é algum?... Cantoria de igreja, dando em cabeça fraca,
desgoverna qual quer valente... Bobajada!
— Bate
na boca, seu Joãozinho Bem-Bem meu amigo, que Deus pode castigar!
— Não se
ofenda, mano velho, deixe eu dizer: eu havia de gostar, se o senhor quisesse
vir comigo, para o norte... Já lhe falei e torno a falar: é convite como nunca
fiz a outro, e o senhor não vai se arrepender! Olha: as armas do Juruminho
estão aí, querendo dono novo...
— Deixa
eu ver...
Nhô
Augusto bateu a mão na winchester, do jeito com que um gato poria a pata num
passarinho. Alisou coronha e cano. E os seus dedos tremiam, porque essa estava
sendo a maior das suas tentações.
Fazer
parte do bando de seu Joãozinho Bem-Bem! Mas os lábios se moviam — talvez ele
estivesse proferindo entre dentes o creio-em-deus-padre — e, por fim, negou com
a cabeça, muitas vezes:
— Não
posso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem!... Depois de tantos anos... Fico muito
agradecido, mas não posso, não me fale nisso mais...
E ria
para o chefe dos guerreiros, e também por dentro se ria, e era o riso do capiau
ao passar a perna em alguém, no fazer qualquer negócio.
— Está
direito, lhe obrigar não posso... Mas, pena é...
Nisso,
fizeram um estardalhaço, à entrada.
— Quem
é?
— É o
tal velho caduco, chefe.
— Deixa
ele entrar. Vem cá, velho.
O
velhote chorava e tremia, e se desacertou, frente às pessoas. Afinal, conseguiu
ajoelhar-se aos pés de seu Joãozinho Bem-Bem.
— Ai,
meu senhor que manda em todos... Ai, seu Joãozinho Bem-Bem, tem pena!... Tem
pena do meu povinho miúdo... Não corta o coração de um pobre pai...
—
Levanta, velho... O senhor é poderoso, é dono do choro dos outros... Mas a
Virgem Santíssima lhe dará o pago por não pisar em formiguinha do chão... Tem
piedade de nós todos, seu Joãozinho Bem-Bem!
—
Levanta, velho! Quem é que teve piedade do Juruminho, baleado por detrás?
— Ai,
seu Joãozinho Bem-Bem, então lhe peço, pelo amor da senhora sua mãe, que o teve
e lhe deu de mamar, eu lhe peço que dê ordem de matarem só este velho, que não
presta para mais nada... Mas que não mande judiar com os pobrezinhos dos meus
filhos e minhas filhas, que estão lá em casa sofrendo, adoecendo de medo, e que
não têm culpa nenhuma do que fez o irmão... Pelo sangue de Jesus Cristo e pelas
lágrimas da Virgem Maria!...
E o
velho tapou a cara com as mãos, sempre ajoelhado, curvado, soluçando e
arquejando. Seu Joãozinho Bem-Bem pigarreou, e falou:
— Lhe
atender não posso, e com o senhor não quero nada, velho. É a regra... Senão,
até quem é mais que havia de querer obedecer a um homem que não vinga gente
sua, morta de traição?... É a regra. Posso até livrar de sebaça, às vezes, mas
não posso perdoar isto não... Um dos dois rapazinhos seus filhos tem de morrer,
de tiro ou à faca, e o senhor pode é escolher qual deles é que deve de pagar
pelo crime do irmão. E as moças... Para mim não quero nenhuma, que mulher não
me enfraquece: as mocinhas são para os meus homens...
— Perdão,
para nós todos, seu Joãozinho Bem-Bem... Pelo corpo de Cristo na Sexta-feira da
Paixão!
— Cala a
boca, velho. Vamos logo cumprir a nossa obrigação...
Mas, aí,
o velho, sem se levantar, inteiriçou-se, distendeu o busto para cima, como uma
caninana enfunada, e pareceu que ia chegar com a cara até em frente à de seu
Joãozinho Bem-Bem. Hirto, cordoveias retesas, mastigando os dentes e cuspindo
baba, urrou: — Pois então, satanás, eu chamo a força de Deus p’ra ajudar a
minha fraqueza no ferro da tua força maldita!
Houve um
silêncio. E, aí:
— Não
faz isso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, que o desgraçado do velho está
pedindo em nome de Nosso Senhor e da Virgem Maria! E o que vocês estão querendo
fazer em casa dele é coisa que nem Deus não manda e nem o diabo não faz!
Nhô
Augusto tinha falado; e a sua mão esquerda acariciava a lâmina da lapiana,
enquanto a direita pousava, despreocupada, no pescoço da carabina. Dera tom
calmo às palavras, mas puxava forte respiração soprosa, que quase o levantava
do selim e o punha no assento outra vez. Os olhos cresciam, todo ele crescia,
como um touro que acha os vaqueiros excessivamente abundantes e cisma de ficar
sozinho no meio do curral.
— Você
está caçoando com a gente, mano velho?
— Estou
não. Estou pedindo como amigo, mas a conversa é no sério, meu amigo, meu
parente, seu Joãozinho Bem-Bem.
— Pois
pedido nenhum desse atrevimento eu até hoje nunca que ouvi nem atendi!... O
velho engatinhou, ligeiro, para se encostar na parede. No calor da sala, uma
mosca esvoaçou.
— Pois
então... — e Nhô Augusto riu, como quem vai contar uma grande anedota — ...Pois
então, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, é fácil... Mas tem que passar primeiro
por riba de eu defunto...
Joãozinho
Bem-Bem se sentia preso a Nhô Augusto por uma simpatia poderosa, e ele nesse
ponto era bem-assistido, sabendo prever a viragem dos climas e conhecendo por
instinto as grandes coisas. Mas Teófilo Sussuarana era bronco excessivamente
bronco, e caminhou para cima de Nhô Augusto. Na sua voz:
— Epa!
Nomopadrofilhospritossantamêin! Avança, cambada de filhos-da-mãe, que chegou
minha vez!...
E a casa
matraqueou que nem panela de assar pipocas, escurecida à fumaça dos tiros, com
os cabras saltando e miando de maracajás, e Nhô Augusto gritando qual um
demônio preso e pulando como dez demônios soltos.
— Ô
gostosura de fim-de-mundo!...
E garrou
a gritar as palavras feias todas e os nomes imorais que aprendera em sua farta
existência, e que havia muitos anos não proferia. E atroava, também, a voz de
seu Joãozinho Bem-Bem:
— Sai,
Canguçu! Foge, daí, Epifânio! Deixa nós dois brigar sozinhos!
A coronha
do rifle, no pé-do-ouvido... Outro pulo... Outro tiro... Três dos cabras
correram, porque outros três estavam mortos, ou quase, ou fingindo.
E aí o
povo encheu a rua, à distância, para ver. Porque não havia mais balas, e seu
Joãozinho Bem-Bem mais o Homem do Jumento tinham rodado cá para fora da casa,
só em sangue e em molambos de roupas pendentes. E eles negaceavam e pulavam,
numa dança ligeira, de sorriso na boca e de faca na mão.
— Se
entregue, mano velho, que eu não quero lhe matar...
— Joga a
faca fora, dá viva a Deus, e corre, seu Joãozinho Bem-Bem...
— Mano
velho! Agora é que tu vai dizer: quantos palmos é que tem, do calcanhar ao
cotovelo!...
— Se
arrepende dos pecados, que senão vai sem contrição, e vai direitinho p’ra o
inferno, meu parente seu Joãozinho Bem-Bem!...
— Úi,
estou morto...
A lâmina
de Nhô Augusto talhara de baixo para cima, do púbis à boca-do-estômago, e um
mundo de cobras sangrentas saltou para o ar livre, enquanto seu Joãozinho
Bem-Bem caía ajoelhado, recolhendo os seus recheios nas mãos.
Aí, o
povo quis amparar Nhô Augusto, que punha sangue por todas as partes, até do
nariz e da boca, e que devia de estar pesando demais, de tanto chumbo e bala.
Mas tinha fogo nos olhos de gato-do-mato, e o busto, especado, não vergava para
o chão.
— Espera
aí, minha gente, ajudem o meu parente ali, que vai morrer mais primeiro...
Depois,
então, eu posso me deitar.
— Estou
no quase, mano velho... Morro, mas morro na faca do homem mais maneiro de junta
e de mais coragem que eu já conheci!... Eu sempre lhe disse quem era bom mesmo,
mano velho... E só assim que gente como eu tem licença de morrer... Quero
acabar sendo amigos...
— Feito,
meu parente, seu Joãozinho Bem-Bem. Mas, agora, se arrepende dos pecados, e
morre logo como um cristão, que é para a gente poder ir juntos...
Mas, seu
Joãozinho Bem-Bem, quando respirava, as rodilhas dos intestinos subiam e
desciam. Pegou a gemer. Estava no estorcer do fim. E, como teimava em
conversar, apressou ainda mais a despedida. E foi mesmo.
Alguém
gritou: — “Eh, seu Joãozinho Bem-Bem já bateu com o rabo na cerca! Não tem
mais!”... — E então Nhô Augusto se bambeou nas pernas, e deixou que o
carregassem.
— P’ra
dentro de casa, não, minha gente. Quero me acabar no solto, olhando o céu, e no
claro... Quero é que um de vocês chame um padre... Pede para ele vir me
abençoando pelo caminho, que senão é capaz de não me achar mais...
E riu.
E o
povo, enquanto isso, dizia: “Foi Deus quem mandou esse homem no jumento, por
mór de salvar as famílias da gente!...“ E a turba começou a querer desfeitear o
cadáver de seu Joãozinho Bem-Bem, todos cantando uma cantiga que qualquer-um
estava inventando na horinha:
— Não me mata, não me mata seu Joãozinho
Bem-Bem!
Você não presta mais pra nada, seu Joãozinho
Bem-Bem!...
Nhô
Augusto falou, enérgico:
— Pára
com essa matinada, cambada de gente herege!... E depois enterrem bem direitinho
o corpo, com muito respeito e em chão sagrado, que esse aí é o meu parente seu
Joãozinho Bem-Bem!
E o
velho choroso exclamava:
— Traz
meus filhos, para agradecerem a ele, para beijarem os pés dele!... Não deixem
este santo morrer assim... P’ra que foi que foram inventar arma de fogo, meu
Deus?!
Mas Nhô
Augusto tinha o rosto radiante, e falou: — Perguntem quem é aí que algum dia já
ouviu falar no nome de Nhô Augusto Estêves, das Pindaíbas!
— Virgem
Santa! Eu logo vi que sé podia ser você, meu primo Nhô Augusto... Era o João
Lomba, conhecido velho e meio parente. Nhô Augusto riu: — E hein, hein João?!
— P’ra
ver...
Então,
Augusto Matraga fechou um pouco os olhos, com sorriso intenso nos lábios
lambuzados de sangue, e de seu rosto subia um sério contentamento.
Daí,
mais, olhou, procurando João Lomba, e disse, agora sussurrado, sumido:
— Põe a
benção na minha filha... seja lá onde for que ela esteja... E, Dionóra... Fala
com a Dionóra que está tudo em ordem!
Depois,
morreu.
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