Mário de Andrade, no conto
"Tempo da Camisolinha ", da obra Contos Novos, assume um foco
narrativo em primeira pessoa, com narrador participante, que, simultaneamente, é o protagonista da narrativa. A narrativa, por sua vez, é posterior aos fatos: o narrador adulto conta sua experiência infantil.
Apesar de os fatos estarem distantes no tempo,
estão próximos emocionalmente. Para
contá-los, o narrador envolve-se tanto, que assume a
linguagem da criança e expressa suas emoções e interrupções por meio de sinais de
pontuação subjetivos, como reticências e exclamações:
"(...) davam nela, machucavam muito ela,
isto é ... muito eu não queria não, só um bocadinho, que machucassem um pouco, sem
estragar a cara tão linda da pintura, só pra minha madrinha saber que agora que eu tinha a boa sorte,
estava protegido e nem precisava mais dela, tó! ai que saudades das
minhas estrelas-do-mar! (...)"
"(...) eu bem não queria pensar, mas pensava sem querer, deslumbrado, mas a
boa mesmo era a grandona perfeita, que havia de dar mais boa sorte pra aquele
malvado de operário que viera, cachorro! dizer que estava com má sorte! Agora eu tinha que dar pra ele a minha grande, a minha
sublime estrelona-do-mar..."
A apresentação do conflito não é a tradicional, já que, inicialmente, o
narrador não parece ter a preocupação de situar o leitor no tempo e no espaço; não se preocupa em conduzir o texto para que o
leitor o assimile de forma segura.
"A feiúra dos cabelos cortados me
fez mal.": tal colocação não conduz o leitor ao assunto diretamente. Posteriormente,
saberemos que os "cabelos cortados" foram os dele. O narrador parte
de suas próprias experiências; o corte dos cabelos
trouxe-lhe uma "noção prematura de sordidez dos nossos atos"
ou "da vida". A criança não queria seus cabelos cortados; isso lhe trouxe sofrimento,
mas a justificativa recebida foi que deveria ficar homem. Isso, em vez de animá-lo, apavorava-o, pois uma criança de três anos não queria ser homem; queria ser apenas criança.
É o início, assim, de uma das abordagens contidas no
texto: o pré-estabelecido, o convencional, as regras
fundamentais, que devem ser sempre seguidas por alguém que deseja fazer, coerentemente, parte da estrutura social. É "sórdido", como nos coloca o narrador, um
menino ter cabelos "dum negro quente, acastanhados nos reflexos", principalmente
se "caíam pelos ombros em cachos gordos, com ritmos
pesados de molas de espiral". A reflexão que nos fica é se o que é sórdido é a imposição, ou a delicadeza dos
cachos... Tal fato se torna tão marcante, que, já homem, os cachos tornaram-se a lembrança de um "engano grave", que o fizeram destruir o
quadro que ainda continha essa lembrança.
No corte dos cabelos, não são apenas eles que são destruídos, mas o "olhar manso, um rosto sem
marcas, franco, promessa de alma sem maldade". O que fica é o homem que acha "besta" a camisolinha conservada
pela mãe para que economizasse.
O adulto, que agora é, tenta-se justificar pelo que ele foi ("Guardo esta
fotografia porque si ela não me perdoa do que tenho
sido ao menos explica"). A criança, forçada a virar homem aos três anos, passa a ter um
"quê repulsivo de anão".
É nítida a comparação que faz entre ele e o
irmão, Totó. O irmão mantém o ar sem malícia e infantil; parece não ter sofrido a repressão vivida pela personagem protagonista.
Ao caracterizá-lo como "criança integral", reforça as perdas sofridas pelo
narrador; nesse momento, a ideia dos cachos retorna à mente do leitor: o problema reforça-se como moral, não como físico; com os cabelos, perdeu-se a pureza.
O personagem narrador - a "monstruosidade
insubordinada", revelada pelos "olhos que espreitam" - contrapõe-se ao irmão, "a própria imagem da infância".
Num momento de "flash-back", o
narrador reflete sobre o valor dos signos do passado ("não sei por que não destruí em tempo também essa fotografia"): é a forma de buscar-se e encontrar-se nas reminiscências. É como se fosse capaz de perceber que a foto era
a comprovação da repressão e seus resultados: o que
fazer diante disso? ... A sensação da incapacidade de reagir...
Quando o leitor entra em contato com tudo isso,
sente que os cachos cortados são ponto de partida do
enredo. O fluxo de consciência vai tomando maior espaço à medida que incomoda o narrador. "Voltemos
ao caso que é melhor": prefere interromper as reflexões a deparar-se, possivelmente, com o que não quer ver...
Nessa repressão tão sofrida, o pai é elemento desencadeador de
todo o processo: "meu pai suavemente murmurou uma daquelas suas decisões irrevogáveis". A antítese marca a introdução do pai no enredo - suave
e irrevogável; nesse caso, a suavidade não se liga à delicadeza, mas ao fato de
não haver discussão nas decisões por ele tomadas. A maior revolta do menino é não ter nenhuma participação nisso:
"Deixassem que eu sentisse por mim, me
incutissem aos poucos a necessidade de cortar os cabelos, nada: uma decisão à antiga, brutal, impiedosa, castigo sem culpa,
primeiro convite às revoltas íntimas (...)".
A reação do narrador é de "monstruosidade insubordinada", voltando-se
contra o cabeleireiro; a dificuldade de lembrar é grande, já que a resistência a tudo isso se mantém até hoje ("Tudo o mais são memórias confusas ritmadas por gritos horríveis(...)").
A seleção de vocabulário é pesada porque a dor também é: "cadáveres de meus cabelos",
"um não-conformismo navalhante"... e a reação do menino é de pranto. Nota-se que o
que dói mais é a troca proposta pelos
adultos: presentes, gozações, espelhos.
Ninguém tenta entender a dor do
garoto.
Na relação indivíduo/mundo, a reação do indivíduo é a revolta: nasce o homem – como queriam os
"outros" – mas é alguém "cheio de desilusões, de revoltas, fácil para todas as
ruindades", com lembranças infantis desagradáveis, cujo único elemento restante foram
"as camisolinhas", tão detestáveis quanto todo o resto.
A figura paterna não afeta apenas o menino, mas também a mãe: depois de um parto desastroso, movia-se
"premiada pelas obrigações da casa e dos
filhos". A ideia de "obrigação" intensifica-se ao longo das ações dela ("menos tratava da casa que se iludia, consolada
por cumprir a obrigação de tratar da casa."). A atitude do pai
diante do sofrimento materno é exposta de forma irônica: "Diante da iminência de um desastre maior,
papai fizera um esforço espantoso, o seu ser que só imaginava a existência no trabalho sem
recreio, todo assombrado com os progressos financeiros que fazia e a subida de
classe."
Observa-se o antagonismo de interesses entre
esses elementos do mesmo ciclo familiar: a criança, preocupada apenas com a
própria dor (tal egocentrismo reflete-se, inclusive,
nas reminiscências do narrador, que não consegue lembrar-se, exatamente, do que ocorria com sua mãe - "(...) não sei direito..." -;
a mãe, preocupada com suas obrigações para com a família; o pai, preocupado com
os "progressos financeiros e a subida de classe". O que vemos,
portanto, é a família conservadora burguesa.
Para melhorar o estado de saúde de sua mãe, vão para a praia. A mudança de espaço não mudará esse quadro familiar.
Observa-se isso, por exemplo, no quadro de Nossa Senhora do Carmo (trazido da
cidade para a praia), utilizado para ameaçar e 2amedrontar o menino
("Meu filho, não mostra isso, que feio! repare: sua madrinha
está
te olhando na parede!"). Diante disso, o
menino não se submete, pois desafia a "madrinha
santa", quando a mãe não está olhando ("Tó! que eu dizia, olhe! Olhe
bem! Tó! olhe bastante mesmo!").
Nessa mudança de espaço, as poucas mudanças de atitudes são apenas aparentes: a mãe "sentia um prazer
perdoável de representar naquelas férias o papel largado de convalescente"; o pai
"deixara menos pai, um ótimo camarada com muita
fome e condescendência". O que se nota é que pai e mãe precisam de motivos,
"desculpas", para se comportarem de modo diferente, enquanto que o
filho mantém sua personalidade rebelde, avessa ao formal.
Os operários trabalhadores do
canal reforçam a hierarquia que a criança já observava na família, já que tratavam melhor a ele, "filhinho de ‘seu dotô’, do que aos próprios filhos": como
diz o próprio narrador, agiam
"proletariamente"... Tudo isso se segue de um fato novo que modifica
o ritmo do enredo: o garoto é presenteado com três estrelas-do-mar por um operário, que lhe diz que as
mesmas dão boa sorte.
A posse das estrelas-do-mar tornou-se algo
fundamental para a criança: constituíam-se num segredo. Não sendo necessário dividi-las ou partilhá-las com alguém, tornam-se algo só seu, capaz de dar a boa sorte prometida e protegê-lo de qualquer infortúnio: "Comer? pra que
comer? elas me davam tudo, me alimentavam, me davam licença para brincar no barro, e si Nossa Senhora, minha madrinha,
quisesse se vingar daquilo que eu fizera pra ela, as estrelas me salvavam,
davam nela (...)"
Porém, a posse das estrelas é momentânea; a felicidade é momentânea.
Ao ver, na praia, um operário triste, queixando-se da sua má sorte, a criança sente-se na obrigação de ceder-lhe sua estrela-do-mar (de início, a pequena, mas, depois, sabia que devia ceder a maior: "(...)
aquele homem com tantos filhinhos pequenos e aquela mulher paralítica na cama!... e no entanto eu era feliz, feliz e com três estrelinhas-domar pra me darem sorte...").
Se, no início do conto, o embate da
criança era com o mundo, agora, é consigo mesma, quando descobre que até dentro de si as coisas não são harmoniosas: ao mesmo tempo que deseja as estrelas, que quer
as três - que, para ele, representam a suprema felicidade
-, incomoda-se com o sofrimento do operário. Dolorosamente, acaba deixando
sua vontade de lado e entrega-lhe a estrela: "Tome! Eu soluçava gritado, tome a minha... tome a minha estrela-do-mar! dá... dá, sim, boa sorte!...".
Tal atitude não deixa - ao contrário do que se poderia esperar de uma narrativa moralista
tradicional - o garoto satisfeito consigo mesmo, já que foi tão altruísta. O que ocorre, na verdade, é um imenso sofrimento,
arrependimento ("eu sofria arrependido"), que ele não consegue conter: "Eu corri pra chorar à larga, chorar na cama, abafando os soluços no travesseiro sozinho.".
À sua maneira, a narrativa torna-se cíclica: o sofrimento vivido com a perda dos cachos castanhos
retorna na perda da estrela-do-mar... é o homem que se forma através de perdas sucessivas, de sofrimentos contínuos, "no infinito dos sofrimentos humanos".
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