"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

sábado, 29 de abril de 2017

Introdução à filosofia de Friedrich Nietzsche

OS PENSAMENTOS FUNDAMENTAIS DE NIETZSCHE
Segundo livro

Não há quase uma realidade sobre a qual Nietzsche não teria dito algo: é possível fazer sínteses a partir de seus escritos sobre quase todas as coisas grandes e pequenas, sobre o Estado, a religião, a moral, a ciência, a arte, a música, sobre a natureza, a vida, a doença, sobre trabalho, homem e mulher, amor, casamento, família, sobre povos, épocas, história, personalidades históricas, contemporâneos, sobre as questões derradeiras do filosofar. Essas sínteses podem ter, no caso particular, um peso maior ou menor; em todo caso, a correta compreensão das manifestações singulares depende da posse dos traços fundamentais de seus movimentos de pensamento e do saber em torno dos conteúdos dominantes.
É possível alcançar os traços fundamentais por dois caminhos: acompanhando a negação ilimitada e apreendendo o elemento positivo. Mas já na negação nietzschiana está constantemente presente um envolvimento de origens positivas, que se comunicam indiretamente no não; inversamente, na comunicação direta da verdade, está ininterruptamente pronta a contradição, que insere posições aparentemente as mais absolutas no movimento que vem do envolvimento; a não ser que Nietzsche permaneça parado contra a sua essência por um instante em uma fixidez dogmática, que se mostra para ele como uma ruptura e que, de fato, nunca permanece em parte alguma irrestrita.
Vir do negativo para o positivo é, para a própria consciência de Nietzsche, o seu problema até o fim. As coisas não se dão de tal modo que, depois de uma fase da vida meramente crítica, ele estaria um dia de posse de uma nova crença. O tempo inteiro há nele o perigo do nada e o tempo inteiro também a percepção do ser. Ainda por fim, ele contabiliza a si mesmo, juntamente com Burckhardt e Taine, entre os niilistas fundamentais: “apesar de eu mesmo ainda não me encontrar desesperado quanto a encontrar a saída e o buraco por meio do qual se chega a ‘algo’” (para Rohde, 23 de maio de 1887).
Até o colapso encontram-se em uma contradição aguda as sentenças negadores e as positivas: “Por mim, nenhum novo ídolo é erigido... Ídolos (meu termo para os ‘ideais’). E, em contrapartida: “Depois de longos anos... prossigo e procuro fazer também publicamente uma vez mais aquilo, que sempre faço para mim e sempre fiz: a saber, pintar imagens de novos ideais na parede” (14, 351).
Essa contradição é, para ele, a expressão do processo unicamente necessário, depois que “Deus está morto”. Ideais significam para ele ídolos, quando eles passam, mas significam também para ele a verdade, quando são prenhes de futuro. “Quem não encontra mais a grandeza em Deus não a encontra mais em geral – ele precisa negá-la ou criá-la” (12, 329). Nietzsche quer criá-la: “Vós o denominais a autodecomposição de Deus: mas trata-se apenas de sua troca de pele... vós deveis revê-lo em breve uma vez mais, para além do bem e do mal” (12, 329).
Aquilo que aparece para a consciência de Nietzsche e em seu agir fático como duas coisas, negar e afirmar, decompor e criar, aniquilar e produzir, torna-se um problema inverídico, quando a resposta afirmadora é esperada no mesmo plano no qual vige o juízo negador: no plano da concepção racional e de sua enunciabilidade compreensível para qualquer um.
O universal racional é como tal crítico e negativo, isto é, o entendimento por si é decompositor; positivamente, só a historicidade do ser irrepresentável, não universal, é que se encontra por si mesma e ligada com o seu fundamento, que não permanece, contudo, velado, mas desprovido de essência, quando ele não traz a si mesmo para a clareza por meio do entendimento. Essa intelecção profunda de Schelling, que o conduziu à cisão de sua filosofia negativa e positiva, não foi possuída por Nietzsche, mas Nietzsche a seguiu inconscientemente. A negação enquanto a aparição do conceber racional é ela mesma afirmação a serviço da historicidade. Essa historicidade, em contrapartida, enunciando-se, entra na esfera do racional e decai, assim, no ser dito do movimento. O racional é apenas respectivamente como um racional por meio de um outro e vale apenas em relações; o histórico vive a partir de si mesmo e entra em comunicações do tornar-se si mesmo.
Sem a amplitude da filosofia negativa não há nenhuma filosofia positiva. Só no purgatório do racional, o homem pode verdadeiramente perceber a sua historicidade positiva. Essa historicidade só chega a falar por meio do racional, com o qual ela de qualquer modo apreende indiretamente o seu elemento historicamente originário. O positivo como fundamento da historicidade da existência movimenta-se, por isto, em todas as direções da racionalidade, entregando-se a elas totalmente, mas conduzindo-as e mantendo-se coeso a partir da origem histórica própria, que não pode saber a si mesma, mas só se clarifica sem intenção na universalidade do que há para ser sabido e por ele produzido.
O positivo sob a forma do que acaba de ser dito teria, porém, se tornado ele mesmo racional-universal e recaído no plano da decomponibilidade ilimitada. Pois é assim que as coisas precisam se dar na racionalidade, ainda que seja na falsa racionalidade, pois uma racionalidade não compreensiva ganha a palavra e se torna consciente. Sob essa figura como doutrina de uma possibilidade de saber geral é que o positivo se mostra como degradado em suas raízes, porque considerado como o mero entendimento, e, com isto, transformado em algo universal e abstrato; da maneira mais radical possível, quando ela emprega essa doutrina da cisão de filosofia positiva e negativa (ou racional e histórica) para alijar o entendimento e, então, recusa de qualquer modo uma prova racional em enunciados faticamente racionais.
Os nexos apontam o caminho para os conteúdos que dominam Nietzsche: na medida em que Nietzsche expõe francamente a sua positividade, seu conteúdo se torna questionável. Na medida em que ele procede buscando e tentando, ele levanta a pretensão extraordinária de uma existência possível. Nietzsche filosofa em uma situação filosófica nova, criada pelos séculos que lhe foram precedentes.
Uma filosofia ingênua, que pode apresentar Deus e mundo e aí o homem, não vê a cisão entre racionalidade e historicidade; ela pode comunicar os seus conteúdos de uma maneira despreocupadamente direta e de modo imagético e pensante, sem decair necessariamente em um equívoco existencial; e, mais tarde, depois da ruptura da ingenuidade, ela pode satisfazer ainda esteticamente aquele que olha para trás por meio da unilateralidade e da totalidade de sua obra, pode se mostrar pretensiosa por meio da verdade da existência que a sustenta. Todavia, se, depois da ruptura do todo inquestionado de Deus, alma e mundo, se sente e ganha a consciência a cisão entre um universal racional e uma historicidade existencial, então se mostram no primeiro plano do racional as questões da dúvida; em Nietzsche: o que é o homem (primeiro capítulo), o que é a verdade (segundo capítulo), o que significa a história e a era atual (terceiro capítulo). Então, porém, o ser também se revela presente em sua história, e, em verdade, é buscado na vontade de futuro (capítulo 4), como interpretação do mundo por esse instante (quinto capítulo), como unificação mística do ser (sexto capítulo).
Nessas questões da dúvida, o impulso já positivamente preenchedor é, para Nietzsche, o seguinte: o amor ao ser humano nobre, que se desespera com o homem em cada uma de suas figuras efetivas; a seriedade inexorável de uma veracidade, que coloca a própria verdade em questão; o preenchimento com figuras históricas, que desemboca na ausência de sentido e de meta da história.
Nas intervenções positivas, a vontade de futuro se mostra como projeto da grande política, que se enraíza no conceito permanente indeterminado da criação; uma doutrina do mundo da vontade de poder se mostra como a intuição que anima os portadores do contramovimento em relação ao niilismo, intuição essa que, girando em círculo, suspende a si mesma; a experiência do ser se anuncia em estados místicos, enunciando-se, sobretudo, na doutrina do eterno do mesmo, que fracassa no paradoxo.
Reside na essência dos conteúdos revelados em Nietzsche o fato de que eles só se mostram para aquele que vai ao seu encontro a partir de si. Por isto, o pensamento de Nietzsche pode parecer por um lado vazio e, por outro, o mais profundo de todos. Ele é vazio, se quisermos ter algo, que valha e subsista; ele é pleno, se participarmos do seu movimento. Se a própria comoção dos impulsos originários de Nietzsche é vivificada, então os desdobramentos negativos de seu pensamento são mais plenos do que os enunciados positivos que, em sua falsa racionalidade, assumem rapidamente ares de cascas nas quais não há nada. Inversamente, os enunciados positivos talvez consigam por um instante arrebatar, quando eles conseguem ser apreendidos simbolicamente e ser tomados como signos; e, por sua vez, os enunciados negativos podem entediar, quando não parecer haver neles nenhuma imagem e nenhum pensamento criador, quando não parece subsistir nenhum símbolo.
Diferentemente dos maiores filósofos do passado, o que é característico de Nietzsche é o fato de que ele, por meio de suas negações, dá a impressão de ser mais verdadeiro do que por meio de suas posições. Não vem à tona para onde o impulso propriamente dito, mais originário, segue por fim, o impulso cuja verdadeira essência não pôde se subtrair a nenhum leitor sério: Nietzsche abre o espaço, ele destrói os horizontes limitadores; ele não realiza uma crítica que institui limites, como Kant, mas ele ensina a colocar em questão; ele preenche com possibilidades, desperta as forças que animam a postura interior.
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JASPERS, Karl. Introdução à filosofia de Friedrich Nietzsche / Karl Jaspers; tradução Marco Antônio Casanova. 1. ed.  Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.

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