"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

sábado, 31 de outubro de 2015

O que é a ética?

“Por que ética? E o que é a ética? Não poderemos nos contentar com uma representação qualquer ou indeterminada. Da mesma forma, pressupondo uma pré-compreensão completamente indeterminada, desde o início podemos nos perguntar: por que afinal devemos nos ocupar com a ética? Na filosofia, mas também nos currícula das escolas, a ética parece ser um fenômeno da moda.
Entre os jovens intelectuais, antigamente havia interesse mais pelas chamadas teorias críticas da sociedade. Ao contrário disto, na ética supõe-se uma reflexão sobre valores reduzida ao individual e ao inter-humano. E teme-se que aqui, contudo, não seria possível encontrar nada de obrigatório, a não ser remontando-se a tradições cristãs ou de outras religiões. É o ético, ou então, ao contrário, as relações de poder, que são determinantes na vida social? E estas não determinam, por sua vez, as representações éticas de um tempo? E se isto é assim, ao se pretender lidar diretamente com a ética e não a partir de uma perspectiva de crítica da ideologia, não representaria isto um retorno a uma ingenuidade hoje insustentável?
Por outro lado, não podemos desconsiderar que, tanto no âmbito das relações humanas quanto no político, constantemente julgamos de forma moral. No que diz respeito às relações humanas, basta observar que um grande espaço nas discussões entre amigos, na família ou no trabalho abrange aqueles sentimentos que pressupõem juízos morais: rancor e indignação, sentimento de culpa e de vergonha. Também no domínio político julga-se moralmente de forma contínua, e valeria a pena considerar que aparência teria uma disputa política não conduzida pelo menos por categorias morais. O lugar de destaque que os conceitos de democracia e de direitos humanos assumiram nas discussões políticas atuais também é, mesmo que não exclusivamente, de caráter moral.
A discussão sobre justiça social, seja em âmbito nacional ou mundial, é também uma discussão moral. Quem rejeita a reivindicação de um certo conceito de justiça quase nem o pode fazer sem contrapor-lhe um outro conceito de justiça. Em verdade as relações de poder de fato são determinantes, mas é digno de nota que elas necessitem do revestimento moral.
Por fim, existe uma série de discussões políticas relativas aos direitos de grupos particulares ou marginalizados, as quais devem ser vistas como questões puramente morais: a questão acerca de uma lei de imigração limitada ou ilimitada, a questão do asilo, os direitos dos estrangeiros, a questão sobre em que medida nos deve ser permitida ou proibida a eutanásia ou o aborto; os direitos dos deficientes; a questão de se também temos obrigações morais perante os animais, e quais. Acrescentam-se aqui as questões da ecologia e da nossa responsabilidade moral para com as gerações que nos sucederão. Uma nova dimensão moralmente desconcertante é a da tecnologia genética.
O complexo de questões acima mencionado diz respeito a estados de coisas que em parte são novos (por exemplo, a tecnologia genética), e em parte alcançaram, através do avanço tecnológico, um lugar de destaque até agora não existente (por exemplo, a responsabilidade para com as gerações futuras, e algumas questões da eutanásia). Outras questões já estavam desde a antiguidade presentes, mas encontram-se fortemente colocadas na consciência geral — e podemos nos perguntar por quê: por exemplo, problemas das minorias, aborto, animais. Não se encontra aqui pelo menos uma das razoes pelas quais a ética novamente é tomada de forma importante? A maioria das éticas antigas — por exemplo, as kantianas — tinham em vista apenas aquelas normas que desempenhavam um papel na vida intersubjetiva de adultos contemporâneos e situados em uma proximidade espaço-temporal; e de repente sentimo-nos desorientados em confronto com os problemas do aborto, da pobreza do mundo, das próximas gerações ou da tecnologia genética.”

TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre ética.
Petrópolis: Vozes, 1996. P. 11-13.






Exercícios para fixação

1. O autor refere-se ao grande espaço reservado aos temas éticos nas discussões entre as pessoas. Faça uma lista desses temas, escolha um deles e posicione-se.

2. O sentimento de indignação ou de vergonha indica que participamos de uma comunidade moral. Dê um exemplo e explique por quê?

3. Qual é a relação entre política e ética? A partir dessa relação, destaque a questão da justiça como um dos temas centrais da ética.

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domingo, 18 de outubro de 2015

Tutaméia

João Guimarães Rosa
Aqui está, o último livro do escritor, Tutaméia, publicado poucos meses antes da sua morte, a exigir leitura e reflexão. Por mais que o procure encarar como mero texto literário, desligado de contingências pessoais, apresenta-se com agressiva vitalidade, evocando inflexões de voz, jeitos e maneiras de ser do homem e amigo. A leitura de qualquer página sua é um conjuro. Como entender o título do livro? No Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa encontramos tuta-e-meia definida por mestre Aurélio como "ninharia, quase nada, preço vil, pouco dinheiro". Numa glosa da coletânea o próprio contista confirma a identidade dos dois termos, juntando-lhes outros equivalentes pitorescos, tais como "nonada, baga, ninha, inânias, ossos de borboleta, quiquiriqui, mexinflório, chorumela, nica". Atribuiria ele realmente tão pouco valor ao volume fórmula como antífrase carinhosa e, talvez, até supersticiosa? Inclinome para esta última suposição. Em conversa comigo (numa daquelas conversas esfuziantes, estonteantes, enriquecedoras e provocadoras que tanta falta me hão de fazer pela vida afora), deixando de lado o recato da despretensão, ele me segredou que dava a maior importância a este livro, surgido em seu espírito como um todo perfeito não obstante o que os contos necessariamente tivessem de fragmentário.
Entre estes havia inter-relações as mais substanciais, as palavras todas eram medidas e pesadas, postas no seu exato lugar, não se podendo suprimir ou alterar mais de duas ou três em todo o livro sem desequilibrar o conjunto. A essa confissão verbal acresce outra, impressa no fim da lista dos equivalentes do título, como mais uma equação: "meaomnia'". Essa etimologia, tão sugestiva quanto inexata, faz tutaméia vocábulo mágico tipicamente rosiano, confirmando a asserção de que o ficcionista pôs no livro muito, senão tudo, de si. Mas também em nenhum outro livro seu cerceia o humor a esse ponto as efusões, ficando a ironia em permanente alerta para policiar a emoção. – Por que Terceiras estórias – perguntei-lhe – se não houve as segundas? – Uns dizem: porque escritas depois de um grupo de outras não incluídas em Primeiras estórias. Outros dizem: porque o autor, supersticioso, quis criar para si a obrigação e a possibilidade de publicar mais um volume de contos, que seriam então as Segundas estórias. – E que diz o autor? – O autor não diz nada – respondeu Guimarães Rosa com uma risada de menino grande, feliz por ter atraído o colega a uma cilada.
Mostrou-me depois o índice no começo do volume, curioso de ver se eu lhe descobria o macete. – Será a ordem alfabética em que os títulos estão arrumados – Olhe melhor: há dois que estão fora da ordem. – Por quê? – Senão eles achavam tudo fácil. "Eles" eram evidentemente os críticos. Rosa, para quem escrever tinha tanto de brincar quanto de rezar, antegozava-lhes a perplexidade encontrando prazer em aumentá-la.
Dir-se-ia até que neste volume quis adrede submetê-los a uma verdadeira corrida de obstáculos. Seria esse o motivo principal da multiplicação dos prefácios, de que o livro traz não um, mas quatro? Prefácio por definição é o que antecede uma obra literária.
Mas no caso do leitor que não se contenta com uma leitura só, mesmo um prefácio colocado no fim poderá ter serventia. Estórias à primeira vista, num segundo relance os prefácios hão de revelar uma mensagem. Juntos compõem ao mesmo tempo uma profissão de fé e uma arte poética em que o escritor, através de rodeios, voltas e perífrases, por meio de alegorias e parábolas, analisa o seu gênero, o seu instrumento de expressão, a natureza da sua inspiração, a finalidade da sua arte, de toda arte.
Assim "Aletria e hermenêutica" é pequena antologia de anedotas que versam o absurdo; mas é, outrossim, uma definição de "estória" no sentido especificamente guimaraes-rosiano, constante de mostruário e teoria que se completam. Começando por propor uma classificação dos subgêneros do conto, limita-se o autor a apontar germes de conto nas "anedotas de abstração", isto é, nas quais a expressão verbal acena a realidades inconcebíveis pelo intelecto. Suas estórias, portanto, são "anedóticas" na medida em que certas anedotas refletem, sem querer, "a coerência do mistério geral que nos envolve e cria" e faz entrever "o supra senso das coisas".
"Hipotrélico" aparece como outra antologia, desta vez de divertidas e expressivas inovações vocabulares, não lhe faltando sequer a infalível anedota do português. E é a discussão, às avessas, do direito que tem o escritor de criar palavras, pois o autor finge combater "o vezo de palavrizar", retomando por sua conta os argumentos de que já se viu acossado como deturpador do vernáculo e levando-os ao absurdo: põe maliciosamente a vista as inconsequências dos que professam a partenogênese da língua e se pasmam ante os neologismos do analfabeto, mas se opõem a que "uma palavra nasça do amor da gente", assim "como uma borboleta sai do bolso da paisagem". A "glosação em apostilas" que segue esta página reforça-lhe a aparência pilhérica, mas em Guimarães Rosa zombaria e pathos são como o reverso e o anverso da mesma medalha. O primeiro "prefácio" bastou para nos fazer compreender que em suas mãos até o trocadilho vira em óculo para espiar o invisível. "Nós os temulentos" deve ser mais que simples anedota de bêbado, como se nos depara. Conta a odisseia que para um borracho representa a simples volta a casa. Porém os embates nos objetos que lhe estorvam o caminho envolvem-no em uma sucessão de prosopopeias, fazendo dele, em rivalidade com esse outro temulento que é o poeta, um agente de transfigurações do real. Finalmente confissões das mais íntimas apontam nos sete capítulos de Sobre a escova e a dúvida, envolvidas não em disfarces de ficção, como se dá em tantos narradores, mas, poeticamente, em metamorfoses léxicas e sintáticas.
É o próprio ficcionista que entrevemos de início num restaurante chic de Paris a discutir com um alter ego, também escritor, também levemente chumbado, que lhe censura o alheamento a realidade: "Você evita o espirrar e o mexer da realidade, então foge-não-foge." Surpreendidos de se encontrarem face a face, os dois eus encaram-se reciprocamente como personagens saídas da própria imaginativa, perturbados e ao mesmo tempo encantados com a sua "sociedade" (sic!), tecendo uma palestra rapsódica de ébrios em que o tema do engagement ressurge volta e meia como preocupação central. O Rosa comprometido sugere ao Rosa alheado escreverem um livro juntos; este não lhe responde a não ser através da ironia discreta com que sublinha o contraste do ambiente luxuoso com o ideal "da rude redenção do povo".
Mas a resposta é acusação de alheamento deve ser buscada também e sobretudo nos capítulos seguintes. Em primeiro lugar, põe-se em dúvida a natureza da realidade através da parábola da mangueira, cada fruta da qual reproduz em seu caroço o mecanismo de outra mangueira; e o inacessível nos elementos mais óbvios do cotidiano real e aduzido, afirmado, exemplificado. Depois de tentar encerrar em palavras o cerne de uma experiência mística, sua, o autor procura captar e definir os eflúvios de um de seus dias "aborígenes" a oscilar incessantemente entre azarado e feliz, até enredá-lo numa decisão irreparável. Possivelmente há em tudo isto uma alusão à reduzida influência de nossa vontade nos acontecimentos, as decorrências totalmente imprevisíveis de nossos atos. A seguir, evoca o escritor o seu primeiro inconformismo de menino em discordância com o ambiente sobre um assunto de somenos, o uso racional da escova de dentes; o que explicaria a sua não-participação numa época em que a participação do escritor é palavra de ordem. Nisto, passa a precisar (ou antes a circunscrever) a natureza subliminar e supraconsciente da inspiração, trazendo como exemplo a gênese de várias de suas obras, precisamente as de mais valor, antes impostas do que projetadas de dentro para fora. Para arrematar a série de confidências, faz-se o contista intermediário da lição de arte que recebeu de um confrade não sofisticado, o vaqueiro poeta em companhia de quem seguira as passadas de uma boiada. Ao contar ao trovador sertanejo o esboço de um romance projetado, este lhe exprobrou decididamente o plano (talvez, excogitado de parceria com o sósia de Montmartre), numa condenação implícita da intencionalidade e do realismo: "Um livro a ser certo devia de se confeiçoar da parte de Deus, depor paz para todos." Arrependido de tanto haver revelado de suas intuições, o escritor, noutro esforço de despistamento, completou o quarto e último prefácio com um glossário de termos que nele nem figuram, mas que representam outras tantas idiossincrasias suas, ortográficas e fonéticas, a exigir emendas nos repositórios da língua. Absorvidos pelos prefácios, ei-nos apenas no limiar dos quarenta contos merecedores de outra tentativa de abordagem. Quantas vezes, mesmo nesta breve cabra-cega preliminar, terei passado ao lado das intenções esquivas do contista, quantas vezes as suas negaças me terão levado a interpretações erradas? Só poderia dizê-lo quem não mais o pode dizer; mas será que o diria? Descontados os quatro prefácios, Tutaméia, de Guimarães Rosa, contém quarenta "estórias" curtas, de três a cinco páginas, extensão imposta pela revista em que a maioria (ou todas) foram publicadas. Longe de constituir um convite à ligeireza, o tamanho reduzido obrigou o escritor a excessiva concentração. Por menores que sejam, esses contos não se aproximam da crônica; são antes episódios cheios de carga explosiva, retratos que fazem adivinhar os dramas que moldaram as feições dos modelos, romances em potencial comprimidos ao máximo.
Nem desta vez a tarefa do leitor é facilitada. Pelo contrário, quarenta vezes há de embrenhar-se em novas veredas, entrever perspectivas cambiantes por trás do emaranhado de outros tantos silvados. Adotando a forma épica mais larga ou gênero mais epigramático, Guimarães Rosa ficava sempre (e cada vez mais) fiel à sua fórmula, só entregando o seu legado e recado em troca de atenção e adesão totais. A unidade dessas quarenta narrativas está na homogeneidade do cenário, das personagens e do estilo. Todas elas se desenrolam diante dos bastidores das grandes obras anteriores; as estradas, os descampados, as matas, os lugarejos perdidos de Minas, cuja imagem se gravara na memória do escritor com relevo extraordinário.
Cenários ermos e rústicos, intocados pelo progresso, onde a vida prossegue nos trilhos escavados por uma rotina secular, onde os sentimentos, as reações e as crenças são os de outros tempos. Só por exceção aparece neles alguma pessoa ligada ao século XX, à civilização urbana e mecanizada; em seus caminhos sem fim, topamos com vaqueiros, criadores de cavalos, caçadores, pescadores, barqueiros, pedreiros, cegos e seus guias, capangas, bandidos, mendigos, ciganos, prostitutas, um mundo arcaico onde a hierarquia culmina nas figuras do fazendeiro, do delegado e do padre. A esse mundo de sua infância o narrador mantém-se fiel ainda desta vez; suas andanças pelas capitais da civilização, seus mergulhos nas fontes da cultura aqui tampouco lhe forneceram temas ou motivos, o muito que vira e aprendera pela vida afora serviu-lhe apenas para aguçar a sua compreensão daquele universo primitivo, para captar e transmitir-lhe a mensagem com mais perfeição. Através dos anos e não obstante a ausência, o ambiente que se abrira para seus olhos deslumbrados de menino conservou sempre para ele suas cores frescas e mágicas. Nunca se rompeu a comunhão entre ele e a paisagem, os bichos e as plantas e toda aquela humanidade tosca em cujos espécimes ele amiúde se encarnava, partilhando com eles a sua angustia existencial. A cada volta do caminho suas personagens humildes, em luta com a expressão recalcitrante, procuram definir-se, tentam encontrar o sentido da aventura humana: "Viver é obrigação sempre imediata"; "Viver seja talvez somente guardar o lugar de outrem, ainda diferente, ausente." "A gente quer mas não consegue furtar no peso da vida." "Da vida sabe-se: o que a ostra percebe do mar e do rochedo." "Quem quer viver, faz mágica." A transliteração desse universo opera-se num estilo dos mais sugestivos, altamente pessoal e no entanto determinado em sua essência pelas tendências dominantes, às vezes contraditórias, da fala popular. O pendor do sertanejo para o lacônico e sibilino, o pedante e o sentencioso, o tautológico e o eloquente, a facilidade com que adapta o seu cabedal de expressões as situações cambiantes, sua inconsciente preferência pelos subentendidos e elipses, seu instinto de enfatizar, singularizar e impressionar são aqui transformados em processos estilísticos.
Na realidade o neologismo desempenha nesse estilo papel menor do que se pensa. Inúmeras vezes julga-se surpreender o escritor em flagrante de criação léxica, recorre-se, porém, ao dicionário, lá estará o vocábulo insólito (acamonco, alarife, avejão, brujajara, cara fuz, chuchorro, esmar, ganja, grinfo, gueta, jaganata, marupiara, nomina, panema, pataratesco, quera, safio, seresma, sessil, uca, vogoroca etc) rotulado de regionalismo, plebeísmo, arcaísmo ou brasileirismo, outras vezes, não menos frequentes, a palavra nova representa apenas uma utilização das disponibilidades da língua, registrada por uma memória privilegiada ou esguichada pela inspiração do momento (associoso, borralheirar, convidatividade, de extraordem, inaudimento, infinição, inteligentudo, inventação, mal-entender-se, mirificacia, orabolas deles!, reflor!, reminisção etc) Com frequência bem menor há, afinal, as criações de inegável cunho individual, do tipo dos amálgamas, abusufruto, fraternura, lunático de mel, metalurgir, orfandade, psiquepiscar, utopiedade com que o espírito lúdico se compraz a matizar infinitamente a língua. Porém, as maiores ousadias desse estilo, as que o tornam por vezes contundente e hermético são sintáticas: as frases de Guimarães Rosa carregam-se de um sentido excedente pelo que não dizem, num jogo de anacolutos, reticências e omissões de inspiração popular, cujo estudo está por fazer. Estonteado pela multiplicidade dos temas, a polifonia dos tons, o formigar de caracteres, o fervilhar de motivos, o leitor naturalmente há de, no fim do volume, tentar uma classificação das narrativas. É provável que a ordem alfabética de sua colocação dentro do livro seja apenas um despistamento e que a sucessão delas obedeça a intenções ocultas. Uma destas será provavelmente a alternância, pois nunca duas peças semelhantes se seguem. A instantâneos mal esboçados de estados de alma sucedem densas microbiografias; a patéticos atos de drama rápidas cenas divertidas; incidentes banais do dia-a-dia alternam com episódios lírico-fantásticos. Entre os muitos critérios possíveis de arrumação vislumbra-se-me um sugerido pelo que, por falta de melhor termo, denominaria de atonímia metafísica. Essa figura estilística, de mais a mais frequente nas obras do nosso autor, surge em palavras que não indicam manifestação do real e sim abstrações opostas a fenômenos percebíveis pelos sentidos, tais como: antipesquisas, acronologia, desalegria, improrrogo, irriticencia, desverde, incogitante, descombinar (com alguém), desprestar (atenção), inconsiderar, indestruir, inimaginar, irrefotar-se etc, ou em frases como "Tinha o para não ser célebre." Dentro do contexto, tais expressões claramente indicam algo mais do que a simples negação do antônimo: aludem a uma nova modalidade de ser ou de agir, a manifestações positivas do que não é. Da mesma forma, na própria contextura de certos contos o inexistente entremostra a vontade de se materializar. Em conversa ociosa, três vaqueiros inventam um boi cuja ideia há de lhes sobreviver consolidada em mito incipiente ("Os três homens e o boi"). Alguém, agarrado a um fragmento de frase que lhe sobrenada na memória, tenta ressuscitar a mocidade esquecida ("Lá nas campinas"). Ameaça demoníaca de longe, um touro furioso se revela, visto de perto, um marruá manso ("Hiato"). Noutras peças, o que não é passa a influir efetivamente no que é, a moldá-lo, a mudar-lhe a feição. O amante obstinado de uma megera, ao morrer, transmite por um instante aos demais a enganosa imagem que dela formara "Reminisção"). A ideia da existência, longe, de um desconhecido benfazejo ajuda um desamparado a safar-se de suas crises ("Rebimba o bom"). Um rapaz ribeirinho consome-se de saudades pela outra margem do rio, até descobrir o mesmo mistério na moça que o ama ("Ripuaria"). Alguém ("João Porém, o criador de perus") cria amor e mantém-se fiel a uma donzela inventada por trocistas. Num terceiro grupo de estórias por trás do enredo se delineia outra que poderia ter havido, a alternativa mais trágica a disponibilidade do destino. O povo de um lugarejo livra-se astutamente de um forasteiro doente em quem se descobre perigoso cangaceiro ("Barra de Vaca"). Um caçador vindo da cidade com intuito de pesquisas escapa com solércia há armadilhas que lhe prepara a má vontade do hospedeiro bronco ("Como ataca a sucuri").
Enganado duas vezes, um apaixonado prefere perdoar à amada e, para depois viverem felizes, reabilita a fugitiva com paciente labor junto aos vizinhos ("Desenredo").
Noutros contos o desenlace não e um "desenredo", mas uma solução totalmente inesperada. Atos e gestos produzem resultados incalculáveis num mundo que escapa às leis da causalidade: daí a multidão de milagres esperando a sua vez em cada conto.
Por entender de través uma frase de sermão, um lavrador ("Grande Gedeão") para de trabalhar; e melhora de sorte. Um noivo amoroso que sonhava com um lar bonito e abandonado pela noiva; mas o sonho transmitiu-se ao pedreiro ("Curtamão") e nasce uma escola. Para que a vocação de barqueiro desperte num camponês é preciso que uma enchente lhe desbarate a vida ("Azo de almirante"). Nessa ordem de eventos, uma personagem folclórica ("Melim-Meloso"), cuja força consiste em desviar adversidades extraindo efeitos bons de causas ruins, apoderou-se da imaginação do escritor a tal ponto que ele promete contar mais tarde as aventuras desse novo Malasarte. Infelizmente não mais veremos essa continuação que, a julgar pelo começo, ia desabrochar numa esplêndida fábula; nem a grande epopeia cigana de que neste livro afloram três leves amostras ("Faraó e a Água do rio", "O outro ou o outro", "Zingaresca"), provas da atração especial que exercia sobre o erudito e o poeta esse povo de irracionais, ébrios de aventura e de cor, refratários é integração social, artistas da palavra e do gesto. Muito tempo depois de lidas, essas histórias, e outras que não pude citar, germinam dentro da memória, amadurecem e frutificam, confirmando a vitória do romancista dentro de um gênero menor. Cada qual descobrira dentro das quarenta estórias a sua, a que mais lhe desencadeia a imaginação. Seja-me permitido citar as duas que mais me subjugaram pela sua condensação, dos romances em embrião que fazem descortinar os horizontes mais amplos. "Antiperipleia" e o relatório feito em termos ambíguos por um aleijado, ex-guia de cego, do acidente em que seu chefe e protegido perdeu a vida. Confidente, alcoviteiro e rival do morto, o narrador ressuscita-o aos olhos dos ouvintes enquanto tenta fazê-los partilhar seus sentimentos alternados de ciúme, compaixão e ódio; "Esses Lopes" é a história, também contada pela protagonista, de um clã de brutamontes violentos que perecem um após outro, vítimas da mocinha indefesa a quem julgavam reduzir a amante e escrava. Duas obras-primas em poucas páginas que bastavam para assegurar a seu autor uma posição excepcional.

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O quinze

Rachel de Queiroz

O primeiro e mais popular romance de Rachel de Queiroz é “O Quinze”, uma obra do Modernismo de 1930. O título se refere a grande seca de 1915, vivida pela escritora em sua infância. O romance se dá em dois planos, um enfocando o vaqueiro Chico Bento e sua família, o outro a relação afetiva de Vicente, rude proprietário e criador de gado, e Conceição, sua prima culta e professora.

Vicente e Conceição
Conceição é apresentada como uma moça que gosta de ler vários livros, inclusive de tendências feministas e socialistas o que estranha a sua avó, Mãe Nácia representante das velhas tradições. No período de férias, Conceição passava na fazenda da família, no Logradouro, perto do Quixadá. Apesar de ter 22 anos, não dizia pensar em casar, mas sempre se "engraçava" ao seu primo Vicente. Ele era o proprietário que cuidava do gado, era rude e até mesmo selvagem.
Com o advento da seca, a família de Mãe Nácia decide ir para cidade e deixar Vicente cuidando de tudo, resistindo. Trabalhava incessantemente para manter os animais vivos. Conceição, trabalhava agora no campo de concentração onde ficavam alojados os retirantes, e descobre que seu primo estava "de caso" com "uma caboclinha qualquer". Enquanto ela se revolta, Mãe Nácia à consola dizendo:
"Minha filha, a vida é assim mesmo... Desde hoje que o mundo é mundo... Eu até acho os homens de hoje melhores."
Vicente se encontra com Conceição e sem perceber confessa as temerosidades dela. Ela começa a trata-lo de modo indiferente. Vicente se ressente disso e não consegue entender a razão.
As irmãs de Vicente armam um namoro entre ele e uma amiga, a Mariinha Garcia. Ele porém se espanta ao "saber" que estava namorando, dizendo que apenas era solícito para com ela e não tinha a menor intenção de comprometimento.
Conceição percebe a diferença de vida entre ela e seu primo e a quase impossibilidade de comunicação. A seca termina e eles voltam para o Logradouro.

Chico Bento e sua família
Sem dúvida a parte mais importante do livro. Apresenta a marcha trágica e penosa do vaqueiro Chico Bento com sua mulher e seus 5 filhos, representando os retirantes. Ele é forçado a abandonar a fazenda onde trabalhara. Junta algum dinheiro, compra mantimentos e uma burra para atravessar o sertão. Tinham o intuito de trabalhar no Norte, extraindo borracha.
No percurso, em momento de grande fome, Josias, o filho mais novo, come mandioca crua, envenenando-se. Agonizou até a morte. O seu fim está bem descrito nessa passagem:
"Lá se tinha ficado o Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz de dois paus amarrados, feita pelo pai.
Ficou em paz. Não tinha mais que chorar de fome, estrada afora. Não tinha mais alguns anos de miséria à frente da vida, para cair depois no mesmo buraco, à sombra da mesma cruz."
Uma cena marcante na vida do vaqueiro foi a de matar uma cabra e depois descobrir que tinha dono. Este o chamou de ladrão, e levou o resto da cabra para sua casa, dando-lhes apenas as tripas para saciarem. Léguas após, Chico Bento dá falta do seu filho mais velho Pedro. Chegando ao Aracape, lugar onde supunha que ele pudesse ser encontrado, avista um compadre que era o delegado. Recebem alguns mantimentos, mas não é possível encontrar o filho. Ficam sabendo que o menino tinha fugido com comboieiros de cachaça. Notem:
"Talvez fosse até para a felicidade do menino. Onde poderia estar em maior desgraça do que ficando com o pai?"

Ao chegarem no campo de concentração, são reconhecidos por Conceição, sua comadre. Ela arranja um emprego para Chico Bento e passa a viver com um de seus filhos. Conseguem também uma passagem de trem e viajam para São Paulo, desistindo de trabalhar com a borracha.

domingo, 11 de outubro de 2015

SAGARANA

Guimarães Rosa

DO AUTOR
Nascido no dia 27/jun/1908, na pequena cidade de Cordisburgo, a meio caminho entre Sete Lagoas e Curvelo, Guimarães Rosa era filho de um pequeno comerciante e passou sua primeira infância entre peões, passarinhos e limos, principalmente limos. Míope sem o saber, o pequenino afastava-se do convívio dos outros garotos e dedicava-se a atividades solitárias ou a ouvir os "causos" contados pelos fregueses ou pelos viajantes que frequentavam o pequeno armazém de seu pai. Vem daí o seu primeiro contata com o folclore e o rico imaginário do homem do sertão.
"Não gosto de falar em infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente, então já era míope e, nem mesmo eu, ninguém sabia. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvirias".
Viveu em Cordisburgo até os dez anos de idade. Foi fazer o ginásio em Belo Horizonte, por essa época, já era capaz de ler em francês e holandês. Sua espantosa capacidade para aprender línguas levou-o a aprender japonês, ainda cursando o ginasial. Mas deixemos que ele mesmo fale um pouco mais de si. Em entrevista concedida a Gúnter Lorenz, crítico literário alemão, em 1965, dentre outras coisas Guimarães Rosa disse:
"Que nasci no ano de 1908, você já sabe. Você não deveria me pedir mais dados numéricos. Minha história, sobretudo minha biografia literária, não devida ser crucificada em anos. As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim. E meus livros Ao avesso; para mim são minha maior aventura. Escrevendo descubro sempre um novo pedaço do infinito. Vivo no infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida, também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa. Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. Enfim ás palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. O crocodilo vem ao mundo como um "magister" da metafísica, pois para ele cada rio é um oceano, um mar de sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de idade. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e es curvos como o sofrimento dos homens. Amo ainda uma coisa dos nossos grandes rios: sua extremidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar extremidade. A estas alturas, você já deve estar me considerando um louco ou um charlatão." (...) "Às vezes, quase acredito que eu mesmo, João, seja um conto contado por mim".
Esta introdução parece um conto de fadas, isto é, a vida de GR parece ficção, entretanto ele é verdadeiro. Um homem alto, bem humorado, sempre bem vestido e (dizem) vaidoso ao extremo. Seus s, suas estórias ai estão para comprovar e encantar leitores e estudiosos de várias partes do mundo.
Na juventude, antes de formar-se em Medicina, concorreu a vários concursos de contos em uma revista bastante popular na época (O Cruzeiro (e venceu todas as vezes em que concorreu). Esse tipo de literatura, entretanto, foi abandonado e nada tem a ver com a obra consagrada do autor.
Formado em Medicina, exerceu a profissão, em ltaúna, por dois anos, cativando a admiração de seus pacientes pela dedicação e pelo aceno de seu trabalho. Em suas longas cavalgadas para atender os doentes, aproveitava para conhecer e apreciar os elementos da natureza e o modo de vida e a fantasia dos homens do sertão, elementos que, depois, profusamente nas narrativas que escrevia
Participou como oficial médico na Revolução Constitucionalista de 32 e posteriormente foi oficial médico das Forças armadas de Minas Gerais, até ser aprovado em um concurso para o Itamarati, dedicando-se, dai, à carreira diplomática. Data dessa época sua participação em 2 concursos literários:
Concorreu ao prêmio de poesia do Rosa concurso da Academia Brasileira de Letras, com o de poemas "Magma" e ao prêmio Humberto de Campos, com o livro "contos", mais tarde refundido e publicado com o nome de "Sagarana".
"Chegamos novamente a um ponto em que o homem e sua biografa resultam em algo completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida, e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico conheci o valor do sofrimento; como rebelde, o valor morte..." Diria mais tarde sobre esse lance de sua vida.
Em 1946, publicou o livro Sagarana, que lhe rendeu a admiração e o reconhecimento de grande pane da crítica, como se pode perceber no fragmento transcrito abaixo:
"Para aquele que tem a obrigação profissional da crítica literária, sentindo muitas vezes esse gosto momo da rotina que vem do contato com figuras já muito conhecidas ou com obras de estreia sem qualquer novidade, nenhuma outra sensação - porque ela vale como um despertar, como um estímulo, como motivo para quer se Mantenha tenha a fé nas faculdades coadoras de sua época intelectual poderá ser comparada a esta de comunicar ao público a presença de um livro inconfundível na literatura e de um autor de autêntica personalidade na vida literária. E isto sem qualquer dúvida ou temor de errar, antes com a certeza de que nós achamos completamente fora do terreno oscilante da mediania e do mais ou menos, colocados em face de um excepcional acontecimento. Tudo se processa, afias, bem rapidamente. Um estímulo, Como de resto o de qualquer livro, nunca pode ser esperado ou previsto. De repente chega-nos o volume, e é uma grande obra que amplia o tempo cultural de uma literatura, que lhe acrescenta alguma coisa de novo e insubstituível, ao mesmo tempo que um nome de escritor, até ontem ignorado do público, penetra ruidosamente na vida literária para ocupar desde logo um dos seus primeiros lugares. O livro é Sagarana e o escritor é o Sr. J. Guimarães Rosa. * *
OBRA
Sagarana, 1946 - contos; "O Burrico Pedrês" "A volta do Marido Pródigo"; "Sarapalha"; "Duelo"; "Minha Gente"; "São Marcos"; "Corpo Fechado"; "Conversa de Bois" ; "A flora e vez de Augusto Matraca" ; Corpo de Ballc, 1956 - novelas; Manuelzão e Miguilim ("Campo Geral"' e "Uma Estória de Amor"); No Urubuquaquá, no Pinhém ("O Recado do Morro", "Cara de Bronze" e "Lélio e Lina"); Noites do Sertão ("Lão-Dalalão" e "Buriti"); Grande Sertão: veredas, 1956 - romance; Primeiras Estórias, l962 - contos; Tutaméia - Terceiras Estórias, 1967 - contos; Estas Estórias, 1969 - contos. (PÓSTUMA); Ave, Palavra, 1970 - contos. (PÓSTUMA).
A grande força da imaginação de Guimarães Rosa, alia-se ao seu extraordinário conhecimento linguístico, tanto da língua materna quanto de outras línguas, faz dele um autor ímpar no panorama da moderna literatura brasileira.
Guimarães Rosa foi um escritor com alma jornalística. Andava pelo sertão, viajava caiu vaqueiros, convivia com as pessoas humildas e simples do interior e anotava. Anotava os "causos", as expressões inusitadas, os provérbios, as lendas, os ditos e as interpretações. Nada lhe escapava. A observação da natureza, as aves, os animais, a flora, os rios, tudo foi sendo incorporado aos poucos para formar um grande patrimônio de conhecimento que ele tão prodigamente nos legou em páginas imortais.
Da coleta do material bruto no início do povo, de sua manipulação linguística c fabularão ás vezes irônica, ás vazes brincalhona, muitas vezes mística, temos o processo de criação que vai refletir a vida social, os costumes, os medos, as superstições, as crendices c o comportamento de seus personagens. Temos a comprovação concreta dessa metodologia em várias passagens recolhidas aqui e ali:
"Pois foi nesse tempo calamitoso que eu vim para a Laginha, de morada, e fui tomando de tudo a devida nota" (Corpo Fechado).
"Nonada. Tiros que o senhor ouviu forma briga de homem não." (Grande Sertão: veredas)
"A vida é um vago variado. O senhor escreva no clareio: sete páginas..." (Grande Sertão: veredas).
"O senhor enche urna caderneta... O senhor vê aonde é o sertão? " (Grande Sertão: veredas)
"Se o senhor doutor está achando alguma boniteza nesses pássaros, eu cá é que não vou dizer que eles são feios..." (Minha Gente).
"Minas Gerais... Minas principia de dentro para fora e do céu para o chão..."(Minha Gente).
"Sim, que, a parte o sentido prisco, valia o ileso gume do vocábulo pouco visto e menos ainda ouvido, raramente usado." (São Marcos) "As palavras têm canto e plumagem." (São Marcos).
UM CHAMADO JOÃO* CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE João era fabulista? Fabuloso? fábula?
Sertão mística disparando. No exílio da linguagem comum? Projetava na gravatinha a quinta face das coisas, inenarrável narrada? Um estranho chamado João para disfarçar, para forçar o que não ousamos compreender? Tinha pastos, buritis plantados no apartamento?
Vegetal ele era ou passarinho sob a robusta ossatura com pinta de boi risonho? Era um teatro e todos os artistas no mesmo papel, ciranda multivocal? João era tudo? Tudo escondido, florindo como flor é flor, mesmo não semeada? Mapa com acidentes deslizando para fora, falando? Guardava rios no bolso, cada qual com a cor de suas águas?
Como misturar, sem conflitar? E de cada gota redigia nome, cura, fim, e no destinado geral seu fado era saber para contar sem desnudar o que não deve ser desnudado e por isso se veste de céus novos? Mágico sem apetrechos, civilmente mágico, apelado de precipites prodígios acudindo a chamado geral? Embaixador do reino que há por trás dos reinos, dos poderes, das supostas fórmulas de abracadabra, sésamo? Reino cercado não de muros, chaves, códigos, mas o reino-reino? Por que João sorria? se lhe perguntavam que mistério é esse? E propondo desenhos figurava menos a resposta que outra questão ao perguntante? Tinha parte com... (não sei o nome) ou ele mesmo era a parte de gente servindo de ponte entre o sub e o sobre que se arcabuzeiam de antes do princípio, que se entrelaçam para melhor guerra, para maior festa? Ficamos sem saber o que era João e se João existiu de se pegar.