"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Arroba

A origem da palavra arroba @

        Na idade média os livros eram escritos pelos copistas à mão. Precursores da taquigrafia, os copistas simplificavam o trabalho substituindo letras, palavras e nomes próprios, por símbolos, sinais e abreviaturas. Não era por economia de esforço nem para o trabalho ser mais rápido (tempo era o que não faltava naquele tempo). O motivo era de ordem econômica: tinta e papel eram valiosíssimos. Foi assim que surgiu o til (~), para substituir uma letra (um "m" ou um "n") que nasalizada a vogal anterior. Um til é um enezinho sobre a letra, pode olhar.  
        O nome espanhol Francisco, que também era grafado "Phrancisco", ficou com a abreviatura "Phco." e "Pco". Daí foi fácil Francisco ganhar em espanhol o apelido Paco. 
      Os santos, ao serem citados pelos copistas, eram identificados por um feito significativo em suas vidas. Assim, o nome de São José aparecia seguido de "Jesus Christi Pater Putativus", ou seja, o pai putativo (suposto) de Jesus Cristo. Mais tarde os copistas passaram a adotar a abreviatura "JHS PP" e depois "PP". A pronúncia dessas letras em sequencia explica porque José em espanhol tem o apelido de Pepe.  
        Já para substituir a palavra latina et (e), os copistas criaram um símbolo que é o resultado do entrelaçamento dessas duas letras: &. Esse sinal é popularmente conhecido como "e comercial" e em inglês, tem o nome de ampersand, que vem do and  (e em inglês) + per se (do latim por si) + and.
         Com o mesmo recurso do entrelaçamento de suas letras, os copistas criaram o símbolo @ para substituir a preposição latina ad, que tinha, entre outros, o sentido de "casa de".
        Veio à imprensa, foram-se os copistas, mas os símbolos @ e & continuaram a ser usados nos livros de contabilidade. O @ aparecia entre o número de unidades da mercadoria e o preço - por exemplo: o registro contábil "10@£3" significava "10 unidades ao preço de 3 libras cada uma". Nessa época o símbolo @ já ficou conhecido como, em inglês como at (a ou em).
        No século XIX, nos portos da Catalunha (nordeste da Espanha), o comércio e a indústria procuravam imitar práticas comerciais e contábeis dos ingleses. Como os espanhóis desconheciam o sentido que os ingleses atribuíam ao símbolo @ (a ou em), acharam que o símbolo seria uma unidade de peso. Para o entendimento contribuíram duas coincidências:
1- a unidade de peso comum para os espanhóis na época era a arroba, cujo "a" inicial lembra a forma do símbolo;
2- os carregamentos desembarcados vinham frequentemente em fardos de uma arroba. Dessa forma, os espanhóis interpretavam aquele mesmo registro de "10@£3"assim: "dez arrobas custando 3 libras cada uma". Então o símbolo @ passou a ser usado pelos espanhóis para significar arroba.
       Arroba veio do árabe ar-ruba, que significa "a quarta parte": arroba (15 kg em números redondos) correspondia a ¼ de outra medida de origem árabe (quintar), o quintal (58,75 kg).
        As máquinas de escrever, na sua forma definitiva, começaram a ser comercializadas em 1874, nos Estados Unidos (Mark Twain foi o primeiro autor a apresentar seus originais datilografados). O teclado tinha o símbolo "@", que sobreviveu nos teclados dos computadores.
        Em 1972, ao desenvolver o primeiro programa de correio eletrônico (e-mail), Roy Tomlinson aproveitou o sentido “@" (at), disponível no teclado, e utilizou-o entre o nome do usuário e o nome do provedor. Assim "Fulano@Provedor X" ficou significando "Fulano no provedor X". 
        Em diversos idiomas, o símbolo "@" ficou com o nome de alguma coisa parecida com sua forma, em italiano chiocciola (caracol), em sueco snabel (tromba de elefante), em holandês, apestaart (rabo de macaco); em outros idiomas, tem o nome de um doce em forma circular: shtrudel, em Israel; strudel, na Áustria; pretzel, em vários países europeus.

Fonte: A Casa da Mãe Joana,
de Reinaldo Pimenta.



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sábado, 15 de agosto de 2015

D. Quixote, por Adelina L. Vieira



Dom Quixote
Adelina Lopes Vieira

Paulo tinha seis anos incompletos;
tinha só quatro o louro e gentil Mário.
Foram à biblioteca, sorrateiros,
e ficaram instantes, mudos, quietos,
a espreitar se alguém vinha; então, ligeiros
como o vento, correram p'ra o armário,
que encerrava os volumes cobiçados:
eram dois grandes livros encarnados,
cheios de formosíssimas gravuras,
mas pesados, meu Deus!
Os pequeninos
porfiavam, cansados, vermelhitos,
por tirá-los da estante. Que torturas!
'Stavam tão apertados, os malditos!
Enfim, venceram não sem ter lutado...
Paulo entalou um dedo, o irmãozinho,
ao desprender os livros, coitadinho!
cambaleou, e foi cair... sentado.
Não choraram: beijaram-se contentes
e Paulo disse a Mário: Que bellote!
vamos ver à vontade o D. Quixote,
sem os ralhos ouvir, impertinentes,
da avó, que adormeceu. Oh! que ventura!
Mário, tu não te mexas, fica atento:
eu vou mostrar-te estampas bem pintadas
com uma condição: cada figura
há de trazer ao nosso pensamento
uma dessas partidas engraçadas,
que eu sei fazer. Serve-te assim?
— 'Stá dito.
Oh! que homenzinho magro! Que esquisito!
Quem é?
— É D. Quixote.
— o barrigudo
é dona Sancha, que a mamãe me disse.
— Dona Sancha é mulher. Oh! que tolice!
O nome que ele tem, bobo, é Pançudo.
— Que está fazendo o padre na cadeira,
a entregar tanto livro à rapariga?
— São livros maus, que vão para a fogueira.
— Quais são os livros maus?
— Não sei, mas penso
que devem ser os que não têm dourados
nem pinturas. Por mais que o papai diga
que o livro é sempre bom, não me convenço.
— Ouves? Chamam por ti, fomos pilhados!
— Meu Deus, como há de ser? Mário, depressa,
vamos arrumar isto; assim.
— Não cessa
De chamar-nos a avó!
— Pronto.
— Inda faltam três livros.
— Já não cabem.
— Que canseira!
— Têm figuras?
— Não têm.
— Capas bonitas?
— Também não têm.
— Então são maus e saltam
pela janela: atira-os à fogueira.
Eram Sêneca, Eurico e Os jesuítas.
Escaparam do fogo os condenados,
ficando um tanto ou quanto amarrotados.
Salvou-os o papai, mas impiedoso,
fechou a biblioteca, e rigoroso
condenou os dois réus, feroz juiz!
A soletrar... os Contos Infantis.



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quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Primeiras Estórias - Guimarães Rosa

João Guimarães Rosa (Cordisburgo, 1908/Rio de Janeiro, 1967);
Gênero literário: estória (conto breve);
Época: Modernismo brasileiro (terceiro tempo);

Contexto histórico-cultural:
Brasil - anos JK, o "presidente bossa-nova"; euforia desenvolvimentista; industrialização acelerada do país = Plano de Metas = "50 anos em 5"; fundação de Brasília; instalação da indústria automobilística; Concretismo = poesia verbivocovisual: Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari, José Paulo Paes, Pedro Xisto, José Lino Grunewald; Bossa nova: João Gilberto, Johnny Alf, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Luis Bonfá, Sérgio Ricardo, Juca Chaves, Jorge Ben (jor), Maysa, Agostinho dos Santos e alguns mais; cinema novo: Nelson Pereira dos Santos, Roberto Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha; Teatro: fim da geração TBC e início das gerações Arena e Oficina; Futebol: seleção brasileira bicampeã do mundo (1958 e 1962); juventude transviada: geração Coca-Cola; atuação permanente da UNE. Mundo - vacina Sabin (pólio, 1955); Sputnik I (1957, URSS inicia a corrida espacial); XX Congresso do PC da URSS (1958: a desestalinização); Revolução Cubana (1958); Existencialismo: Jean-Paul Sartre; Novelle Vague: cinema de Louis Malle, François Truffaut, Jean-Luc Godard; explosão do rock-and-roll: Elvis Presley, Bill Halley, Little Richard, Chuck Berry, Paul Anka.

ENREDOS
I - "As margens da alegria". Um menino descobre a vida, em ciclos alternados de alegria (viagem de avião, deslumbramento pela flora, e fauna) e tristeza (morte do peru e derrubada de uma árvore).
II - "Famigerado". O jagunço Damázio Siqueira atormenta-se com um problema vocabular: ouviu a palavra "famigerado" de um moço do governo e vai procurar o farmacêutico, pessoa letrada do lugar, para saber se tal termo era um insulto contra ele, jagunço.
III - "Sorôco, sua mãe, sua filha". Um trem aguarda a chegada da mãe e da filha de Sorôco, para conduzi-las ao manicômio de Barbacena. Durante o trajeto até a estação, levadas por Sorôco, elas começam surpreendentemente a cantar. Quando o trem parte, Sorôco volta para casa cantando a mesma canção, e os amigos da cidadezinha, solidariamente, cantam junto.
IV - "A menina e lá". Nhinhinha possuía dotes paranormais: seus desejos, por mais estranhos que fossem, sempre se realizavam. Isolados na roça, seus parentes guardam em segredo o fenômeno, para dele tirar proveito. As reticentes falas da menina tinham caráter de premonição: por exemplo, o pai reclamara da impiedosa seca. Nhinhinha "quis" um arco-íris, que se fez no céu, depois de alentadora chuva. Quando ela pede um caixãozinho cor-de-rosa com efeites brilhantes ninguém percebe que o que ela queria era morrer...
V – "Os irmãos Dagobé". O valentão Damastor Dagobé, depois de muito ridicularizar Liojorge, é morto por ele. No arraial, todos dão como certa a vingança dos outros Dagobé: Doricão, Dismundo e Derval. A expectativa da revanche cresce quando Liojorge comunica a intenção de participar do enterro de Damastor. Para surpresa de todos, os irmãos não só concordam, como justificam a atitude de Liojorge, dizendo que Damastor teve o fim que mereceu.
VI - "A terceira margem do rio". Um homem abandona família e sociedade, para viver à deriva numa canoa, no meio de um grande rio. Com o tempo, todos, menos o filho primogênito, desistem de apelar para o seu retorno e se mudam do lugar. O filho, por vínculo de amor, esforça-se para compreender o gesto paterno: por isso, ali permanece por muitos anos. Já de cabelos brancos e tomado por intensa culpa, ele decide substituir o pai na canoa e comunica-lhe sua decisão. Quando o pai faz menção de se aproximar, o filho se apavora e foge, para viver o resto de seus dias ruminando seu "falimento" e sua covardia.
VII - "Pirlimpsiquice". Um grupo de colegiais ensaia um drama para apresentá-lo na festa do colégio. No dia da apresentação, há um imprevisto, e um dos atores se vê obrigado a faltar. Como não havia mais possibilidade de se adiar a apresentação, os adolescentes improvisam uma comédia, que é entusiasticamente bem recebida pela plateia.
VIII - "Nenhum, nenhuma". Uma criança, não se sabe se em sonho ou realidade, passa férias numa fazenda, em companhia de um casal de noivos, de um homem triste e de uma velha velhíssima, de quem a noiva cuidava. O casal interrompe o noivado, e o menino, que conhecera o Amor observando-os, volta para a casa paterna. Lá chegando, explode sua fúria diante dos pais ao notar que eles se suportavam, pois tinham transformado seu casamento num desastre confortável.
IX - "Fatalidade". Zé Centeralfe procura o delegado de uma cidadezinha, queixando-se de que Herculinão Socó vivia cantando sua esposa. A situação tornara-se tão insuportável que o casal mudara de arraial. Não adiantou: o Herculinão foi atrás. O delegado, misto de filósofo, justiceiro e poeta, depois de ouvir pacientemente a queixa, procura o conquistador e, sem a mínima hesitação, mata-o, justificando o fato como necessário, em nome da paz e do bem-estar do universo.
X - "Seqncia". Uma vaca fugitiva retorna a sua fazenda de origem. Decidido a resgatá-la, um vaqueiro persegue-a com incomum denodo. Ao chegar à fazenda para onde a vaca retornara, o vaqueiro descobre que havia outro motivo para sua determinação: a filha do fazendeiro, com quem o rapaz se casa.
XI - "O espelho". Um sujeito se coloca diante de um espelho, procurando reeducar seu olhar. Apagando as imagens do seu rosto externo. A progressão desses exercícios lhe permite, daí a algum tempo, conhecer sua fisionomia mais pura, a que revela a imagem de sua essência.
XII - "Nada e a nossa condição". O fazendeiro Tio Man'Antônio, com a morte da esposa e o casamento das filhas, sente-se envelhecido e solitário. Decide vender o gado, distribuindo o dinheiro entre as filhas e genros. A seguir, divide sua fazenda em lotes e os distribui entre os empregados, estipulando em testamento uma condição que só deveria ser revelada quando morresse. Quando o fato ocorre, os empregados colocam seu corpo na mesa da sala da casa-grande e incendeiam a casa: a insólita cerimônia de cremação era seu último desejo.
XIII - "O cavalo que bebia cerveja". Giovânio era um velho italiano de hábitos excêntricos: comia caramujo e dava cerveja para cavalo. Isso o tornara alvo da atenção do delegado e de funcionários do Consulado, que convocam o empregado da chácara de "seo Giovânio", Reivalino, para um interrogatório. Notando que o empregado ficava cada vez mais ressabiado e curioso, o italiano resolve então abrir a sua casa para Reivalino e para o delegado: dentro havia um cavalo branco empalhado. Passado um tempo, outra surpresa: Giovânio leva Reivalino até a sala, onde o corpo de seu irmão Josepe, desfigurado pela guerra, jazia no chão. Reivalino é incumbido de enterrá-lo, conforme a tradição cristã. Com isso, afeiçoa-se cada vez mais ao patrão, a ponto de ser nomeado seu herdeiro quando o italiano morre.
XIV - "Um moço muito branco". Os habitantes de Serro Frio, numa noite de novembro de 1872, têm a impressão de que um disco voador atravessou o espaço, depois de um terremoto. Após esses eventos, aparece na fazenda de Hilário Cordeiro um moço muito branco, portando roupas maltrapilhas. Com seu ar angelical, impõe-se como um ser superior, capaz de prodígios: os negócios de Hilário Cordeiro, o fazendeiro que o acolheu, têm uma guinada espantosamente positiva. Depois de fatos igualmente miraculosos, o moço desaparece do mesmo modo que chegara.
XV - "Luas-de-mel". Joaquim Norberto e Sa-Maria Andreza recebem em sua fazenda um casal fugitivo, versão sertaneja de Romeu e Julieta. Certos de que os capangas do pai da moça virão resgatá-la, todos se preparam para um enfrentamento: a casa da fazenda transforma-se num castelo fortificado. É nesse clima de tensão que se celebra o casamento dos jovens, a que se segue a lua-de-mel, que acontece em dose dupla: dos noivos e do velho casal de anfitriões, cujo amor fora reavivado com o fato. Na manhã seguinte, a expectativa se esvazia com a chegada do irmão da donzela, que propõe solução satisfatória para o caso.
XVI - "Partida do audaz navegante". Quatro crianças, três irmãs e um primo, brincam dentro de casa, aguardando o término da chuva. A caçula, Brejeirinha, brinca com o que lhe dava mais prazer: as palavras. Inventa uma estória do tipo Simbad, o marujo, que ganha novos elementos quando todos vão brincar no quintal, à beira de um riacho. Liberando sua fantasia, Brejeirinha transforma um excremento de gado no "audaz navegante", colocando-o para navegar riacho abaixo.
XVII - "A benfazeja". Mula-Marmela era mulher de Mumbungo, sujeito perverso que se excitava com o sangue de suas vítimas. Esse vampiro tinha um filho, Retrupé, cujo prazer só diferia do pai quanto à faixa etária das vítimas: preferia as mais frescas. Apesar de amar seu homem e ser correspondida, Mula-Marmela não hesitara em matá-lo e depois cegar Retrupé, de quem se torna guia. Passado algum tempo, resolve assassiná-lo: percebe que esta seria a única maneira de refrear o instinto de lobisomem do rapaz.
XVIII - "Darandina". Um sujeito bem-vestido rouba uma caneta, é surpreendido e, para escapar dos que o perseguem, escala uma palmeira. Uma multidão acompanha atentamente os esforços das autoridades, que procuram convencer o rapaz a descer. Resistindo, ele diz frases desconexas e tira toda a roupa, revelando notável equilíbrio físico. A sessão de nudismo leva um médico a nova tentativa de diálogo. Ao se aproximar, o médico percebe que o sujeito voltara à normalidade e que, envergonhado, pedia socorro. A multidão, sentindo-se ludibriada, não aceita essa sanidade repentina e se dispõe a linchá-lo. Sentindo o risco, o sujeito berra um grito de louvor à liberdade, motivo bastante para a multidão ovacioná-lo e carregá-lo nos ombros.
XIX - "Substância". O fazendeiro Sionésio apaixona-se por sua empregada Maria Exita, que fora abandonada pela família e criada pela peneireira Nhatiaga. Na fazenda, o ofício de Maria Exita era o de quebrar polvilho, trabalho duro mas que a moça realizava com prazer e competência. Embora preocupado com a ascendência da moça, Sionésio sente que a paixão é maior que o preconceito e pede-a em casamento.
XX - "Tarantão, meu patrão". O fazendeiro João-de-Barros-Dinis-Robertes tem uma surpreendente explosão de vitalidade em sua velhice caduca. Como se fora um Quixote, determina-se a matar seu médico: o Magrinho, seu sobrinho-neto. Ao longo da viagem rumo à cidade, recruta um bando de desocupados, ciganos e jagunços, que acatam sua liderança, pelo carisma natural do velho. Chegando à "frente de batalha", Tarantão percebe que era dia de festa: uma das filhas de Magrinho fazia aniversário. O susto inicial, provocado pela invasão do "exército", transforma-se em alívio quando o velho discursa, dizendo de seu apreço pela família e pelos novos amigos, colecionados ao longo da última cavalgada.
XXI - "Os cimos". O menino da primeira estória revela agora a face do sofrimento, causado pela doença da Mãe, fato que apressa sua viagem de volta à casa paterna. Os últimos dias de férias são de preocupação. O Menino só relaxava quando via, todas as manhãs e sempre à mesma hora, um tucano se aproximar da casa dos rios, onde se hospedava. Num processo de sublimação, desencadeado pela beleza da ave, o Menino ganha energia para resistir e para transferir à Mãe uma carga de fluidos mentais positivos, que lhe permitam superar a doença. Quando o Tio o procura para comunicar a melhora da Mãe, o Menino experimenta momentos de êxtase, pois só ele sabia do motivo da cura.

FOCO NARRATIVO
As indicações feitas a seguir são pontuadas com os algarismos que indicam a ordem de publicação de cada estória no livro. Assim, dez delas têm o foco relato centrado na terceira pessoa:
I-"As margens da alegria"; II-"Famigerado"; III-"Sorôco, sua mãe, sua filha"; IV-"A menina de lá"; V-"Os irmãos Dagobé"; VIII-"Nenhum, nenhuma"; X-"Seqncia"; XIV-"Um moço muito branco"; XIX-"Substância" e XXI-"Os cismos". As onze estórias restantes são relatadas em primeira pessoa; VI-"A terceira margem do rio"; VII-"Pirlimpsiquice"; IX-"Fatalidade"; XI-"O espelho"; XII-"Nada e a nossa condição"; XIII-"O cavalo que bebia cerveja"; XV-"Luas de mel"; XVI-"Partida do audaz navegante"; XVII-"A benfazeja"; XVIII-"Darandina" e XX-"Tarantão, meu patrão". Dessas onze estórias, apenas duas apresentam o narrador como protagonista: "O espelho" e "Pirlimpsiquice"; nas outras, o relato é feito por um espectador privilegiado, que presencia a ação e registra suas impressões a respeito do que assiste. O narrador pode ser também um personagem secundário da estória, com laços de parentesco ou e amizade com o protagonista.
Quanto ao emprego dos tempos verbais, nota-se que, na maior parte das estórias, o relato se faz através de uma mistura do pretérito perfeito com o pretérito imperfeito do indicativo.

ESPAÇO
A maioria das estórias se passa em ambiente rural não especificado, em sítios e fazendas; algumas têm como cenário pequenos lugarejos, arraiais ou vilas. Os ambientes são apresentados com poucos mas precisos toques: moldura de altos morros, vastos horizontes, grandes rios, pastos extensos, escassas lavouras. Duas estórias, no entanto - "O espelho" e "Darandina" -, transcorrem em cidades, pressupostas até como grandes centros urbanos, pelo fato de mencionarem a existência de secretarias de governo, hospício, corpo de bombeiros, jornalistas, parques de diversões, prédios de repartições públicas e outros serviços tipicamente urbanos.

PERSONAGENS

Embora variem muito quanto à faixa etária e experiência de vida, as personagens se ligam por um aspecto comum: suas reações psicossociais extrapolam o limite da normalidade. São crianças e adolescentes superdotados, santos, bandidos, gurus sertanejos, vampiros e, principalmente, loucos: sete estórias apresentam personagens com este traço.