"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Descoberta da Literatura

    No dia-a-dia do engenho,
    toda a semana, durante,
    cochichavam-me em segredo:
    saiu um novo romance.
    E da feira do domingo
    me traziam conspirantes
    para que os lesse e explicasse
    um romance de barbante.
    Sentados na roda morta
    de um carro de boi, sem jante,
    ouviam o folheto guenzo ,
    a seu leitor semelhante,
    com as peripécias de espanto
    preditas pelos feirantes.
    Embora as coisas contadas
    e todo o mirabolante,
    em nada ou pouco variassem
    nos crimes, no amor, nos lances,
    e soassem como sabidas
    de outros folhetos migrantes,
    a tensão era tão densa,
    subia tão alarmante,
    que o leitor que lia aquilo
    como puro alto-falante,
    e, sem querer, imantara
    todos ali, circunstantes,
    receava que confundissem
    o de perto com o distante,
    o ali com o espaço mágico,
    seu franzino com o gigante,
    e que o acabassem tomando
    pelo autor imaginante
    ou tivesse que afrontar
    as brabezas do brigante.
    .
    (E acabaria, não fossem
    contar tudo à Casa-grande:
    na moita morta do engenho,
    um filho-engenho, perante
    cassacos do eito e de tudo,
    se estava dando ao desplante
    de ler letra analfabeta
    de curumba, no caçanje
    próprio dos cegos de feira,
    muitas vezes meliantes. )
    .

    MELO NETO, João Cabral de. Descoberta da literatura.

    In: ______. A escola das facas. Rio de Janeiro:

    Alfaguara, 2008. p. 83-84. © by herdeiros de João Cabral de Melo Neto

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