"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Do you speak Google?

A língua do Google

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A tradução quase instantânea de textos para 52 línguas é apenas o primeiro passo rumo a um comunicador universal em que o idioma deixa de ser barreira e passa a ser o portal do grande encontro das culturas

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As diferenças de idioma são um divisor da humanidade. Há dois caminhos para contornar essa barreira. Num deles, busca-se um retorno à linguagem única que, segundo a Bíblia, existia antes da Torre de Babel. Ao longo da história, algumas línguas de fato procuraram desempenhar esse papel. Por exemplo, o latim, na Antiguidade, ou o inglês, nos dias de hoje. Línguas artificiais como o esperanto, criado no século XIX pelo polonês L.L. Zamenhof, também se candidataram a realizar essa tarefa.

O outro caminho é o da tradução universal. Em princípio, seria coisa de ficção científica. O mais insólito modelo de tradutor universal aparece no livro O Guia do Mochileiro das Galáxias, dos anos 70: um peixinho é introduzido no ouvido do protagonista e verte frases alienígenas para o inglês. Na série Jornada nas Estrelas, a tecnologia entra em cena e um dispositivo permite a conversa não somente entre "terráqueos", mas entre habitantes de diferentes planetas. Pois bem: como acontece com frequência, a ficção científica não estava lidando com o impossível, mas apenas antecipando o futuro. A tecnologia já está avançada na criação de um tradutor universal. O sistema mais eficiente opera nos computadores do Google, o gigante da internet. Hoje, ele permite a tradução instantânea de textos escritos em 52 idiomas. Para o leitor, é como colocar-se diante de uma biblioteca infinita e descobrir que todas as publicações estão em português. Estima-se que em dez anos já sejam 250 as línguas contempladas. E, nesse ponto, a inclusão de aplicativos de tradução simultânea em computadores e telefones celulares permitirá que bilhões de pessoas se entendam – sem jamais ter de abandonar a própria língua.

Por trás do Google Tradutor está o conhecimento acumulado em inteligência artificial (I.A.), ramo da computação que se dedica ao desenvolvimento de modelos e programas que produzem nas máquinas um comportamento "inteligente". Nascida nos anos 40, a área produziu experimentos famosos como o robô Eliza, software que simulava diálogos reais na década de 60, e o supercomputador Deep Blue, da IBM, que em 1997 derrotou o campeão russo Garry Kasparov em uma partida de xadrez. O "cérebro" da máquina podia analisar cerca de 200.milhões de jogadas por segundo na busca do xeque-mate. O primeiro estágio da tradução universal – a de textos – já atingiu na internet um nível que linguistas e especialistas em inteligência artificial classificam como avançado. Isso quer dizer que, embora os erros de tradução da ferramenta sejam perceptíveis, os textos que ela apresenta permitem a compreensão do assunto de que eles tratam.

O funcionamento do tradutor do Google remete à Pedra de Roseta, o bloco de granito de 1,20 metro de altura que foi encontrado pelo exército de Napoleão, no século XVIII, e serviu de chave para a decifração dos hieróglifos egípcios. A Pedra traz inscrições de um mesmo texto na antiga língua do Egito e em grego. No século XIX, coube aos estudiosos Thomas Young e Jean-François Champollion relacionar os termos dos dois idiomas para desvendar a língua dos faraós. De forma análoga, os computadores do Google trabalham com pares de textos em línguas diferentes e calculam a probabilidade de palavras de uma delas corresponderem a termos da outra (confira o funcionamento). Com base nesses cálculos, o sistema é capaz de, em menos de um segundo, montar textos em 52 línguas, cada vez que um usuário o requisita.

O tradutor do Google está à frente dos rivais. Em pesquisas patrocinadas pelo governo americano, ele supera com frequência ferramentas de outras empresas e universidades. "Ele também é reconhecido como o melhor entre os sistemas comerciais", diz David Yarowsky, professor de ciência da computação da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Isso significa sobrepujar os rivais Bing Translator, da Microsoft, e Babel Fish, do Yahoo!. "Hoje, a potência da ferramenta está relacionada ao tamanho de seu banco de dados. E também ao uso de supercomputadores, com sua imensa capacidade de processar informações", explica Helena Caseli, pesquisadora do Laboratório de Linguística Computacional da Universidade Federal de São Carlos. Se são esses os fatores determinantes, é certo que o tradutor vai evoluir. O aumento na capacidade de processar informações dos supercomputadores é garantido pela Lei de Moore – que postula que a capacidade dos chips dobra a cada 24 meses. O banco de dados do Google também cresce continuamente. Ele começou a ser formado em 2006, com textos oficiais da ONU vertidos para seis idiomas. Em seguida, a empresa recorreu a documentos bilíngues de arquivos públicos. Finalmente, mergulhou na internet. Hoje, seus próprios usuários ajudam a ampliar o banco de dados sugerindo traduções alternativas àquelas que lhes são apresentadas. "Há, no entanto, certo limite para essa abordagem", diz Miles Osborne, pesquisador da Universidade de Edimburgo, na Escócia, que trabalhou no projeto do Google. É por isso que vem sendo estudada a inclusão de regras gramaticais no programa: além dos algoritmos, ele usaria essas regras para compor textos mais fluentes. Hoje, as traduções invariavelmente contêm tropeços de gramática. Assim mesmo, quem se detém em uma página estrangeira, esteja ela escrita em mandarim, africânder, vietnamita, japonês ou hindi, já sabe ao menos sobre o que se fala ali. "Há cinco anos, isso era impossível. Daqui a cinco anos, teremos mais fluência", afirma David Yarowsky.

À medida que os tradutores avançarem, seus impactos deverão se espalhar pelas mais variadas áreas. No campo acadêmico, por exemplo, o avanço será dramático. "Em algumas áreas, como ciência e tecnologia, as versões automáticas poderão ser até melhores do que as feitas por humanos, pois, para nós, é muito difícil guardar detalhes de temas específicos", diz Yarowsky. Considere-se que atualmente, nos campos de ciências, tecnologia, finanças e administração, 90% do conteúdo de alta qualidade está em inglês, e a importância dos tradutores automáticos para milhões de estudantes e profissionais ao redor do mundo se torna clara. Yarowsky também aponta frutos na economia: "Será mais fácil vender produtos e serviços ao exterior, com a eliminação de custos com tradução de manuais técnicos, material promocional e e-mails". Atualmente, turistas já se beneficiam da tecnologia na hora de escolher destinos de viagem sem levar em conta a língua local, uma vez que ferramentas como a do Google estão disponíveis em celulares. Há outros dispositivos portáteis que fazem a conversão voz-texto ou texto-voz. Soldados americanos enviados ao Afeganistão já testaram tal aparelho, que dispara mensagens sonoras escolhidas pelos militares na língua local. "É a chance de pessoas de todas as partes do mundo saberem o que as demais pensam. Assim, suas diferenças podem ser minimizadas", diz Yarowsky. "Eu não sei o que um garoto de Bagdá pensa sobre os Estados Unidos, mas gostaria de saber." O Google já colocou seu arsenal também à disposição de outras ferramentas. Além de verter páginas da web, seu know-how na área traduz documentos apresentados por usuários, chats de texto via Google Talk e até converte legendas de vídeos no YouTube. Para conectar línguas e mentes via celular, precisará agregar ao sistema o reconhecimento de voz, desenvolvido por várias empresas ao redor do mundo. "A tradução voz a voz é incrível, e nós adoraríamos realizá-la", reconhece Nate Tyler, relações-públicas do Google internacional. É mais do que isso. E, embora a empresa tente despistar, o mercado espera dela a ferramenta para a próxima década.

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Fonte: Revista Veja, 03 de maio de 2010
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