"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

quinta-feira, 27 de maio de 2010

A crônica: um gênero tão livre e tão perigoso


Já escrevi mais de cinco mil crônicas. E a uns estudantes que me pediram uma síntese sobre o gênero, respondi o seguinte:

É o samba da literatura. É ao mesmo tempo, a poesia, o ensaio, a crítica, o registro histórico, o factual, o apontamento, a filosofia, o flagrante, o miniconto, o retrato, o testemunho, a opinião, o depoimento, a análise, a interpretação, o humor. Tudo isso ela contém, a polivalente. Direta a simples como um samba. Profunda como a sinfonia”.

(Artur da Távola, Jornal O Dia, 27 de junho de 2001.)

Talvez iniciasse este texto dizendo que ele poderia ser uma das tantas crônicas sobre a crônica. Mas vou deixando para depois. O que me leva a escrever aqui e agora, neste nosso espaço educador, é o fato de estarmos em tempo de oficinas na Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro.O gênero se inaugura nesta edição.

Este texto – crônica ou não - quer mexer um pouco com nossas ideias sobre o gênero e com os afazeres pedagógicos que por certo andarão acontecendo em muitas escolas que desenham, num silencioso trabalho, o sonho e a esperança de uma educação melhor.

O que temos como alicerce comum é o caderno do professor - real ou virtual - com a orientação minuciosa do trabalho, compartilhada por tantas cabeças e corações numa mesma sintonia de intenções. Ele mapeia nossa primeira investida, nosso pensar e repensar, e nos encoraja a rascunhar e tecer outros projetos para outros futuros e próximos alunos que virão.

Também oferece ao nosso dispor leitor uma pequena coletânea de crônicas e cronistas, de Machado de Assis a Carlos Heitor Cony, numa linha do tempo situada entre 1877 a 2007.

Fico pensando, engolindo seco, que ainda se fala que o professor, de um certo modo, não tem um projeto leitor. O que pode ser uma reflexão para uma outra crônica, mas não a de agora, deste pedaço encorajador e laborioso. Considerando-se, no entanto, a polêmica mal tocada, nada melhor do que cada professor se organizar e realizar a sua leitura como um mote para os alunos realizarem as suas. É como se o seu patrimônio de leituras circulasse em meio às oficinas de preparação para a Olimpíada, arejando-a. Assim se descobrirá muita coisa sobre a crônica. Outros olimpos.

Penso e acredito que os professores que mergulharem nesse projeto irão usufruir também de suas ideias próprias sobre a crônica. Por conta de suas íntimas e intensas provocações. Já adiantei no título e volto a ressaltar: a crônica para mim tem um toque de liberdade e uma brisa de perigo.Será?

Imagino que boa parte de vocês já perambulou pelo caderno “A ocasião faz o escritor” e já organizou sua leitura inicial no percurso da sua sequência didática. E em meio a tudo isto deve estar ainda se dizendo: afinal, o que é mesmo uma crônica?

Fico pensando se é tão importante assim, ter uma definição certa e apurada deste gênero que nos aponta a tantos caminhos e nos leva a tantas direções. Penso eu que tudo aquilo que é aparentemente livre tem sua dose exata e correspondente de perigoso. Falo isso porque podemos formar um conceito sobre este gênero tão delicioso e delicado de ler e tão bem inserido na cultura brasileira.

No começo pode ser que a gente faça algumas pequenas confusões nas hipóteses de apropriação pedagógica, e assim achemos que a crônica tem algo próximo e parecido com o conto, por exemplo. E tem mesmo. Parece, é próxima, similar, tudo bem. Mas, é bem diferente.

Talvez valha a pena relembrar -“Cronos”, o deus grego do tempo - que a crônica narra fatos históricos em ordem cronológica e trata de temas da atualidade. Verdade relativa e parcial. Há outras características da crônica a serem consideradas num projeto que deseja a sua produção. Assim como a fábula e o enigma, por exemplo, a crônica é um gênero narrativo. Nessa hora a gente se lembra de uma das mais famosas crônicas da História da literatura luso-brasileira que corresponde à definição de crônica como "narração histórica": É a "Carta de Achamento do Brasil", de Pero Vaz de Caminha", na qual são narrados a D. Manuel, o descobrimento do Brasil e os primeiros dias que os marinheiros portugueses passaram aqui.

O que sabemos hoje, depois de tantos redescobrimentos, é que a crônica assume vários tons ao retratar os acontecimentos da vida brasileira. Como se vê, há no modus operandi genuinamente brasileiro um certo ar camalêonico na crônica. Pode ser? Podemos considerar que a crônica tal qual se configura, nasce com Machado de Assis. Veja uma pitada quando, no final do século XIX, escreve uma crônica sobre a crônica:

Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se conjecturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e la glace est rompue está começada a crônica.(...)”.

(Machado de Assis. O nascimento da crônica. "Crônicas Escolhidas", São Paulo: Ática, 1994)

Numa outra síntese podemos dizer que a crônica, publicada em jornais ou revistas, virtuais ou reais, destina-se à leitura dos e sobre os acontecimentos sociais e cotidianos. Destaca-se: não busca a exatidão da informação. É pois, diferente da notícia, da reportagem, que trata de relatar os fatos que acontecem. A crônica os analisa num outro enfoque. Livre e perigoso. Por assim se constituir, inaugura no real um colorido emocional, sutil, intenso. Oferece aos olhos do leitor uma situação comum e ao mesmo tempo inusitada, vista por outro ângulo, singular, íntimo, revelador. (Imagino quantos outros adjetivos você poderá à crônica atribuir).

Quem é o leitor da crônica? Boa pergunta. O leitor pressuposto da crônica é urbano e, em princípio, um leitor de jornal ou de revista. Talvez uma espécie de preocupação que acompanha a vida cotidiana faça com que esse leitor, dentre os assuntos tratados, dê ao cronista maior atenção aos problemas do modo de vida urbano, do mundo contemporâneo, dos pequenos acontecimentos do dia a dia comuns nas grandes cidades. É como se esses acontecimentos pudessem contemplar os problemas humanos vividos em todos os lugares e em todas as ordens sociais. Mas, cá entre nós, penso que a crônica já circula pelos cotidianos das tantas comunidades, guetos e espaços alternativos e vai cronicando onde houver a ocasião para se cronicar.

Podemos também dizer que a crônica tem jornalismo na literatura. Ou literatura no jornalismo. De um, recebe a observação atenta da realidade que pulsa e do outro, a construção da linguagem, o jogo verbal. Há uma dita ideia de que a crônica seria um gênero menor, que iria embora esquecida como as noticias de jornal que, desatualizadas, embrulham peixes. Pelo fato de ser acolhida pela literatura, a crônica literária se descobre na sua engenhosa grandeza. Assim, temos hoje a crônica eternizada nos muitos livros já editados. O que comprova o seu valor literário, histórico e cultural, no sentido de garantir durabilidade no tempo. O que acontece nesse caso é que o escritor autor não prioriza no seu dizer o acontecimento em si. Revela a sua própria leitura, outorgando a ele uma espécie de análise ou retrato agudo em especial. O que configura a temporalidade à crônica por trazer sutilmente temas ligados a questões éticas, sociais, econômicas, culturais, educacionais, políticas. Em suma, posso mesmo dizer que a crônica situada entre o Jornalismo e a Literatura, permite considerar o cronista como poeta dos acontecimentos cotidianos.

Por nisso falar, veja uma pitada da crônica de Rubem Braga ao trazer para este gênero um assunto tão comum da vida cotidiana: uma reclamação de vizinhos:

Recado ao senhor 903

Vizinho, Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador que me mostrou a carta que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite - e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explicito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1.003.(...)

(Rubem Braga, Recado ao senhor 903, Para gostar de ler: crônicas, S.P. Ática, 1977).

Um trunfo da crônica é que nela os eventos aparentemente banais, corriqueiros ganham outra "dimensão" graças ao olhar subjetivo e cuidadoso do autor. E o leitor acompanha o acontecimento, como uma testemunha guiada por esse olhar cronista que lhe configura uma versão única e singular.

As personagens, quando passeiam nas crônicas, realçam o assunto. Elas acabam não tendo descrição psicológica profunda como no conto ou romance. Geralmente apresentam características suficientes para compor traços genéricos com os quais o leitor se identifica. Um aspecto a conferir nas oficinas, não é?

Há uma característica da crônica fácil de conferir: é um texto narrativo que, em geral, é curto, narrado em primeira pessoa. É o próprio escrito do escritor que está “dialogando” com o leitor. Apresenta-lhe assim a sua visão de mundo, através de sua forma pessoal de compreender os acontecimentos que o cercam. É, em geral, menor que o conto. Em toque de palavras. O que lhe configura o ar moderno e dinâmico do contemporâneo, quando tudo acontece rapidamente. Urge tocar o leitor.Sinal dos tempos.

Outro detalhe importante. Geralmente, as crônicas apresentam linguagem simples, espontânea, situada entre a linguagem oral e a literária. Isso contribui também para que o leitor se identifique com o cronista, que acaba se tornando o porta-voz daquele que lê.

É muito comum a ironia se materializar em humor. E vice versa. O que no leitor tem um efeito de empatia e crítica social. Fica evidente na produção da crônica que o autor não que dar uma resposta a alguma problemática social eleita como tema ou assunto. Mas sim promover uma reflexão inteligente, viva e criativa, de maneira a provocar o surgimento de possíveis respostas frente à situação enfocada. E são as escolhas linguísticas que vão constituindo a ligação do texto com o contexto que lhe configura como base, suporte ou ponto de partida. É importante saber suas articulações na construção dos sentidos de um texto. É a linguagem que fisga o leitor: parceiro, coadjuvante, o adepto.

É importante dizer, como nos convida o “Caderno do Professor” em sua intenção de colaborar com cada fazer pedagógico que é preciso mergulhar nessa ocasião de fazer o escritor. É hora de iniciar o contato direto e inteligente com a crônica. Com a leitura apurada de alguns exemplos delas poderemos vislumbrar a sua diversidade, saber de sua arquitetura e de sua natureza tão diversa. Talvez os primeiros escritos de seus alunos-cronistas não contenham todos os elementos ou recursos inerentes ao gênero. Com um pouco de tempo revelado em oficinas e experiências mediadas virão os cronistas-alunos, levando-os à consistência de uma autoria com estilo, propriedade e algum tom e olhar característicos sobre a vida de cada lugar. O importante é que eles se conduzam por um olhar investigativo e poético sobre o cotidiano da sua comunidade e desvele em palavras uma situação que mereça ser retratada em crônica. Seja ela no tom que o autor escolher.

O que nos resta agora? Mergulhar no trabalho do ser professor. Compartilhar os primeiros segredos e os pequenos mistérios desse gênero textual. Este é um bom começo para favorecer a instalação desse olhar especial sobre um lugar onde se vive e transformá-lo em palavras estampadas em crônica: este texto contemporâneo que nos traz humor, intimidade, lirismo, reflexão, surpresa, estilo, seriedade, leveza, elegância, solidariedade...

Para terminar essa conversa, vou fazer (com seu aval, é claro) o seguinte: na próxima edição mergulharei num fato incomum acontecido no meu trivial viver e que lateja na minha cabeça por esses dias banais e comuns e dele escreverei, uma crônica, quem sabe uma breve crônica. Mais: Depois, numa edição posterior, tendo como base o mesmo fato vivido, escreverei um pequeno conto. Aí teremos mais coisas para alimentar a nossa conversa nessa nossa praça virtual. Você topa?

Vamos ver o que acontece. Aqui voltarei para saber...

Antonio Gil Neto

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Alguns links úteis sobre cronistas e crônicas. Visite, saboreie e...bom apetite!

http://www.releituras.com/
http://www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/cronicas/index.htm
http://scliar.org/moacyr/
http://www.marioprataonline.com.br
http://www.estadao.com.br/busca/cronicas
http://www.scribd.com/doc/10940016/Cronicas-Selecionadas-Do-Jornal-Estadao-Luis-Fernando-Verissimo
http://almanaque.folha.uol.com.br/rubem_braga.htm

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Fonte: http://escrevendo.cenpec.org.br

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