"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

quinta-feira, 11 de março de 2010

José Saramago revê história do Velho Testamento

Comparar o novo livro de Saramago “Caim” com “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” é natural. Nos dois trabalhos, o autor português dá sua interpretação da Bíblia. Primeiro, foi o Novo Testamento. Agora, é sobre o Antigo Testamento que Saramago exercita as possibilidades narrativas. Reconta, ao seu modo irônico e com um requintado humor, histórias que vão do jardim do Éden ao episódio do dilúvio.

Começa com a expulsão de Adão e Eva do paraíso. E desde já fica claro que o Deus de Saramago não é nenhum velhinho benevolente a passar a mão carinhosa na cabeça de seus filhos. Ao contrário, o que se vê é um Deus teimoso, cheio de caprichos e disposto a qualquer absurdo como prova de fé e obediência de suas criaturas.

Caim, o primogênito de Adão e Eva que matou o irmão Abel, é o personagem central da trama. O assassinato do irmão é o ponto de partida desse anti-herói que, com boa retórica e uma capacidade de interpretar os fatos que muito se aproxima do próprio Saramago, consegue que o todo-poderoso reconheça sua parcela de responsabilidade no impulso que o levou a matar Abel.

Diante do corpo ensanguentado e coberto de moscas de Abel, Caim e Deus travam uma disputa verbal deliciosa de se testemunhar. E assim segue ao longo de todo livro: criador e criatura em pé de guerra, numa peleja em que o que está em jogo é nada menos que a humanidade.

“Matei abel porque não podia matar-te a ti, pela intenção estás morto”, diz Caim, ao que responde Deus: “Compreendo o que queres dizer, mas a morte está vedada aos deuses”. Numa espécie de acordo de recompensa e castigo, Caim é marcado na testa e condenado a andar “errante e perdido pelo mundo” até o fim de seus dias – o que não será logo, já que aquela marca é o sinal de que ninguém o poderá matar.

Ali começa a longa jornada de Caim, que passa do presente ao futuro, testemunha fatos que ainda vão acontecer, volta ao passado e garante um tempo literário ágil e moderno. Sua primeira parada (também a mais longa e marcante de sua interminável trajetória) é na terra de nod, uma cidade em construção. Ali, Caim vira pisador de barro, é elevado a porteiro do quarto da dona que governa tudo aquilo e acaba como amante da dona do lugar, Lilith.

Mas, como é seu destino, Lilith fica para trás, e Caim retoma sua interminável viagem como testemunha das obras e do poder sufocante de Deus. Vê a destruição de Sodoma e Gomorra, o assalto a Jericó, conhece Abraão a quem Deus ordena o sacrifício do próprio filho, participa da construção da arca que salvará a humanidade do dilúvio, junto a Noé e sua família.

Dotado de um sombrio pessimismo de quem é condenado a ver o inenarrável, Caim encontra uma maneira de punir a divindade que odeia. Aproveita um descuido de confiança do dono do mundo e se vinga à altura daquele que, só por ser Deus, governa “a vida íntima dos seus crentes, estabelecendo regras, proibições, interditos e outras patranhas do mesmo calibre”.

Narrativa

Como já de costume, Saramago surpreende em “Caim” com sua prosa moderna, musical, quase sem pontos finais. Os nomes próprios não têm iniciais maiúsculas, e os diálogos estão separados por vírgulas – o intervalo breve que garante agilidade ao texto.

Mas o que fica mesmo de “Caim”, e faz a gente ler economizando as páginas, com vontade que não chegue a número 172, é a incrível capacidade de Saramago de fazer de uma velha uma nova história. De recontar com encanto o que todo mundo já conhece, mas de outro jeito. Sem perder, claro, sua cruel veia irônica, nem seu talento de expressar com humor negro uma realidade.


“CAIM”
Autor:
José Saramago
Editora: Companhia das Letras
172 páginas


Nenhum comentário: