"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Conto de verão nº 2: Bandeira Branca

Luís Fernando Veríssimo


Ele: tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.
Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas. Só no terceiro Carnaval se falaram.
– Como é teu nome?
– Janice. E o teu?
– Píndaro.
– O quê?!
– Píndaro.
– Que nome!
Ele de legionário romano, ela de índia americana. Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.
– Ah.
Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados.
E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse – Até o Carnaval que vem – e saiu correndo.
No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:
– Me dá alguma coisa.
– O quê?
– Qualquer coisa.
– O leque.
O leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.
***
No ano seguinte, ela não apareceu no baile.
Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná.
Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que acontecera?
– Você vomitou a alma – disse a mãe.
Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca.
Nem o leque tinha mais o cheiro dela.
Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube – e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.
– Sei lá. Bávara tropical – disse ela, rindo.
Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano
anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.
– E aquela bailarina espanhola?
– Nem me fala. E o toureiro?
– Aposentado.
A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse – Píndaro?! – e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro.
Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi – pelo menos o meu tirolês era autêntico – e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo – não vale, você cresceu mais do que eu – e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.
***
Encontraram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso, num aeroporto. Ela
desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse – quase não reconheci você sem fantasias. Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele lhe dissera fora – preciso te dizer uma coisa –, e ela dissera – no Carnaval que vem, no Carnaval que vem – e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara.
– O que você ia me dizer, no outro Carnaval? – perguntou ela.
– Esqueci – mentiu ele.
Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil. – E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda
tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu.


MORICONI, Ítalo. Os cem melhores contos brasileiros do século.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 582-5.

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